4
de Março, 2014
por Vicente Jorge Silva
Portugal
está no extremo ocidental da Europa,
a Ucrânia no extremo
oriental. No nosso jardim à
beira-mar, decorre a última avaliação da troika e prolongam-se os ecos do Congresso
do PSD, das jornadas parlamentares do PS ou da escolha tardia
do cabeça-de-lista socialista às próximas
europeias, Francisco Assis,
que irá defrontar
Paulo Rangel (uma dupla no género Dupond e Dupont de As Aventuras de Tintim).
No
encerramento do Congresso
do Coliseu, Passos Coelho foi lapidar: o «país está melhor»,
embora os portugueses ainda não o sintam… É a consolação que nos resta relativamente
aos ucranianos que, esses, estão
suspensos de um destino mais do que incerto,
depois de dias de convulsão sangrenta e revolucionária. Na Ucrânia vivem-se momentos absolutamente dramáticos para o seu povo
e também para o futuro desta Europa
a que pertencemos ou a que os
ucranianos pró-europeus gostariam de pertencer.
Por muito cómodo que fosse fazermos de conta de que a Ucrânia está
demasiado longe para merecer atenção,
apesar de nos cruzarmos tantas vezes com imigrantes vindos desse outro
extremo do continente, o que ali está
em jogo tem a ver também connosco,
com a paz e a estabilidade na Europa, com uma ameaça de confronto
entre a Rússia e o Ocidente.
Depois da queda do muro de Berlim e da desintegração
do bloco soviético, a crise ucraniana é, porventura, a mais grave dos últimos 25 anos - e sobre a qual se projectam fantasmas inquietantes como aqueles que estiveram
na origem da primeira Grande Guerra, há precisamente um século.
Se a História não se repete e o contexto dos acontecimentos é claramente diverso entre as duas épocas, já
a tentação do abismo onde pairam esses
fantasmas pode manifestar-se com um ímpeto quase suicidário.
Qualquer passo em falso - e ninguém
estará em condições de prevenir que isso não
aconteça num ambiente de 'tempestade perfeita' - tenderá a precipitar a Rússia e o Ocidente num conflito de proporções imprevisíveis.
Com
o seu orgulho nacionalista exacerbado pelos Jogos Olímpicos
de Inverno, em que Putin apostara como emblema do seu poder de novo czar, a Rússia acabou por
apresentar-se como um urso ferido pelo
desmoronamento súbito do
regime pró-moscovita de Ianukovich.
Mas, como se isso não bastasse
à humilhação russa, sobrevieram ainda a fuga cobarde e vergonhosa do ditador aliado e a revelação dos podres de uma oligarquia
grotesca que, em apenas três
anos, saqueara em benefício próprio
- e gastos sumptuários em palácios horrorosamente
kitsch, como se pôde ver nas televisões
- os cofres já rarefeitos da
Ucrânia pela anterior passagem da oligarquia
concorrente da sra. Timochenko.
Ora, Putin conhece
bem o universo das oligarquias corruptas - de que ele é, aliás,
o patrão e padrinho russo - mas não
suporta o seu reflexo caricatural que lhe mina a credibilidade e o poder. Por isso, ele
vê no levantamento ucraniano uma ameaça
directa a si mesmo e ao seu
regime.
Evidentemente, a Ucrânia
não é a Geórgia de há alguns anos
nem a Checoslováquia dos
tempos de Brejnev, o que deveria afastar o risco de uma invasão
e ocupação pela Rússia. Só que
a Ucrânia é também um país 'cientificamente' dividido pela herança
estalinista entre o Leste e
a Crimeia maioritariamente russófonos e o Oeste marcadamente europeu.
Além disso, tudo
se conjuga no complexo xadrez ucraniano para que os
extremos se toquem, entre os extremistas nacionalistas anti-russos e os seus irmãos
inimigos pró-russos, cujo ódio visceral é alimentado pela nostalgia comum do fascismo (mesmo com as cores do chamado nacional-bolchevismo, que aliás campeia entre alguns ideólogos do regime de
Putin).
Entaladas entre os dois extremos mais
activistas, as populações que aspiram à integração
na Europa e as que se sentem mais
próximas da Rússia - as quais, numa decisão irracional
do novo poder pós-Ianukovich,
viram agora interdito o russo como segunda
língua oficial - tendem, entretanto, a um progressivo afastamento ou até à separação
entre dois blocos 'nacionais'.
Assim, a aspiração
central à democracia, à liberdade
e a um Estado de Direito que
animou o levantamento da praça Maidan
parece refém dos radicalismos internos e dos confrontos externos que ameaçam a Ucrânia.
O
pior de tudo é que talvez se tenha
ido longe de mais para regressar
a um ponto de equilíbrio,
entre a preservação da unidade do país e uma solução de tipo federal que permitisse manter a convivência pacífica entre as diversidades regionais, étnicas e linguísticas.
A
Ucrânia está longe, muito longe,
mas o drama que ali se vive passou a fazer parte do nosso quotidiano e a condicionar o nosso futuro no outro extremo da
Europa.