Cinco Sentidos

 

14 de Março, 2011

 

por Carla Hilário Quevedo

 

Christian Longo matou a mulher e os três filhos. Está oito anos no corredor da morte e aceita que tem de morrer, mas faz um último pedido: quer doar os seus órgãos.

 

Os novos doadores

 

L i um artigo perturbador no New York Times de Christian Longo, um prisioneiro no corredor da morte da prisão estatal do Oregon. Longo matou a mulher e os três filhos. Tem 37 anos e está oito à espera de ser executado. O tempo serviu para negar o que fizera, tentar enganar os outros sobre o que fizera, reconhecer o seu crime hediondo e cancelar os pedidos de perdão da pena. Longo aceita que tem de morrer pelo crime que cometeu e pede que seja cumprido um último pedido: quer doar os seus órgãos. O pedido foi recusado pelas autoridades prisionais, apesar de não haver nenhuma lei que o proíba. As três drogas nas injecções letais danificam permanentemente os órgãos. Mas não acontece assim em todos os estados. No Ohio ou em Washington, é usada uma quantidade maior de um barbitúrico forte, que não tem esta acção destruidora. É desconcertante que um condenado à morte sugira uma maneira menos intoxicante de morrer, com a intenção de salvar vidas anónimas. Outros condenados à morte acompanham Longo no seu pedido e nenhum pede alterações à pena. Visto que uma boa acção não compensa outra , por que não aceitar a doação? Não os vai salvar do inferno.

 

Não é Querer

 

B ento XVI não ficará para a História apenas como um Papa que cumpriu a sua função. Atentemos em três declarações corajosas do líder da Igreja Católica, começando pelas mais recentes. Bento XVI afirmou que os judeus não são culpados da morte de Jesus Cristo, recusando com firmeza a acusação que durante séculos legitimou o anti-semitismo mais rude e justificou os crimes persecutórios de que o povo judaico foi alvo. A segunda declaração importante apareceu na mensagem de ano novo, em que o Papa condenou a violência contra os cristãos no Médio Oriente e apelou à liberdade religiosa como o caminho a tomar para o estabelecimento da paz. A terceira declaração aconteceu em finais de Janeiro e passou despercebida entre nós. Bento XVI, no discurso anual ao Tribunal da Rota Romana, que declara a nulidade dos casamentos, disse que ninguém pode reivindicar o direito a uma cerimónia nupcial. O aumento das invalidações de matrimónios nos Estados Unidos estará na base das preocupações do Papa, que aconselhou os fiéis que se dizem preparados para dar um passo tão importante na sua vida a procurar aconselhamento pré-matrimonial. O casamento não é para todos.

 

Pétalas homicidas

 

Q uem nunca ouviu falar do imperador romano (entre 218 e 222) Marco Aurélio Antonino, conhecido por Elagábalo (ou Heliogábalo), tem uma boa oportunidade para conhecer uma história e um quadro que o tornaram célebre. Basta ler o artigo de Mary Beard, no Times Literary Supplement, com o belo título Facts among the flowers . A propósito da publicação da obra The Emperor Elagabalus: Fact or Fiction, de Leonardo de Arrizabalaga y Prado, Mary Beard fala de Roses of Heliogabalus, de 1888, de Lawrence Alma-Tadema. Num jantar sumptuoso, Elagábalo e os seus amigos assistem a uma cena que parece suave e encantadora. Muitas pétalas coloridas de flores caem sobre os restantes convidados, deitados num piso térreo. A história é, afinal, a de um assassínio colectivo. As pétalas eram tantas que asfixiaram os convidados. Quando o quadro de Alma-Tadema foi apresentado ao público vitoriano, um crítico elogiou a técnica, mas expressou reservas quanto à cena escolhida pelo pintor. O novo livro sobre Elagábalo parece querer provar rumores. Mas a veracidade da história não importa tanto como conhecer os medos da época. Não comprem o livro. Vejam o quadro.

 

Acho que percebi

 

S tefani Joanne Angelina Germanotta é Lady Gaga e foi entrevistada por Andrew Cooper para o 60 Minutes. É também, aos 24 anos, apontada como a digna sucessora de Madonna, a quem a comparam com frequência. A comparação nunca me pareceu evidente, mas a entrevista teve a utilidade de revelar que Lady Gaga é uma estrela tal como Madonna o foi. Ou é. Madonna explorou a fama a seu favor até chegar a um momento em que a maior acusação que lhe fazem é ter cinquenta anos. Lady Gaga diz ser especialista na «arte da fama», mas a descrição do conceito é melhor que o título. Segundo diz, a fama é fabricada e controlada pelo artista. O truque consiste em desviar a atenção do público para o que lhe interessa a ela, Lady Gaga, e não ao que interessa aos seus fãs: a sua vida privada. A solução está em inventar «uma vida» no palco que não coincide com a sua, mas que vai ao encontro das expectativas de quem a . E as expectativas são as de sempre: as pessoas querem ver a queda e o retorno dos seus heróis. Os fãs querem que morra? Lady Gaga simula a sua morte. Querem que ressuscite? Gaga respira no teledisco seguinte. É habilidoso, mas precisa de explicação.

 

Saudades das más

 

Na revista Obit, Kevin Nance queixa-se da extinção da femme fatale no cinema americano. Com amarga ironia, insinua que o mais parecido com uma mulher vingativa e manipuladora que tivemos nos filmes candidatos aos Óscares foi Matie Ross, a menina de 14 anos de True Grit (Indomável), interpretada por Hailee Steinfeld. É certo que não vemos mulheres belas e amorais como dantes. A misoginia foi canalizada de outra maneira, assim como a maldade deixou, a pouco e pouco, de ter um nome de mulher, talvez por receio de retaliações feministas. No entanto, Nance lembra que o modelo da mulher independente que resistia a ser uma vítima era representado pela femme fatale de policiais extraordinários. Belas, insolentes e, acima de tudo, determinadas a conseguir o que queriam, eram irresistíveis não para os homens que eram ludibriados por elas, mas também para o público, que torcia por elas e ansiava por que a história acabasse bem. Ou melhor, mal para todos os outros. Talvez seja tarde para repetir estes demónios de olhos angelicais e pernas que não acabavam. Agora, as raparigas choram e sofrem e sofrem e choram. Ou matam com golpes de karaté. Uma seca.