A revanche contra o Ocidente
Após a grande ilusão da Primavera Árabe, que antevia amanhãs risonhos e democráticos para o Oriente Médio, a roda da História gira agora em sentido inverso
Na Batalha de Poitiers, em 732, Carlos Martel derrotou as tropas muçulmanas e freou o expansionismo árabe, que já havia conquistado boa parte da Península Ibérica e pretendia avançar sobre o continente europeu. Em janeiro de 1492, com a vitória dos reis católicos na Batalha de Granada, consumou-se a queda do Califado de al-Andalus e o fim da presença muçulmana na Europa. Estas duas derrotas marcaram o fim da presença árabe no continente europeu e representaram uma humilhação que os muçulmanos jamais digeriram. A al-Qaeda e agora o Estado Islâmico buscam, de certo modo, vingar estas derrotas para o Ocidente.
O califado extremista no Iraque e Síria é um fato novo. Isso significa que o inesperado ocorreu: existe hoje um Estado Islâmico (EI) com recursos humanos, fundos amplos, armamentos pesados, bases militares, um sentimento nacional e uma liderança determinada. Tal Estado é uma perigosa organização terrorista e muito mais. Trata-se de um governo de fato que procura impor sua concepção do mundo a milhões de pessoas e hoje controla e busca expandir suas fronteiras, além de promover ações terroristas no exterior. Atua com base em concepções políticas medievais, mas vale-se de todos os recursos modernos da comunicação social. Seu líder, Abu Bakr al-Baghdadi, divulgou um comunicado elogiando Bin Laden no momento de sua morte e ameaçou uma violenta retaliação. É o que está em curso hoje.
Os Estados Unidos e o mundo em geral foram subitamente confrontados com esta nova realidade. Pela primeira vez, este governo de fato procura expandir suas fronteiras, nas quais procura impor sua visão a milhões de pessoas sobre as quais exerce uma ascendência, como suas ações recentes têm demonstrado.
O Iraque, um estado em decomposição, tem sido o principal teatro de operações do EI e sua base original. Mas a Síria, outro estado em desagregação, é hoje o núcleo principal de suas ações militares. Acreditou-se ingenuamente que os oponentes de Bashar Al-Assad eram democratas. Rapidamente, porém, os grupos radicais assumiram a vanguarda. A partir daí, começa o fluxo de recursos financeiros, recrutas e armamentos para os radicais do EI.
Henry Kissinger, a despeito de seus 90 anos, continua agudamente lúcido e afirma em livro recém-publicado que “a Síria e o Iraque provavelmente serão incapazes de reconstruir-se como estados. O conflito nesses países e nas áreas próximas tornou-se o símbolo de uma nova tendência inquietante: a desintegração dos estados nacionais e sua absorção por unidades sectárias e tribais, através das fronteiras em violentos confrontos entre si e manipulados por forças externas, sem observar nenhum regra além da força bruta”.
Depois da grande ilusão da Primavera Árabe, que antevia amanhãs risonhos e democráticos para o Oriente Médio, a roda da História gira agora em sentido inverso. Da desintegração da ordem regional vigente e sua substituição por crescentes forças radicais e antiocidentais surge um quadro mais preocupante do que nunca. A ameaça das forças que buscam uma revanche de Carlos Martel e dos reis católicos de Granada é uma ameaça sistêmica sem precedentes. O Ocidente começa a dar-se conta disso. Ainda não é claro que conclusões tirará.
Luiz Felipe Lampreia foi ministro das Relações Exteriores