A era do terrorismo ostentação

 

Impossível apagar da memória a degola quase didática

 

Algumas imagens colam em nossa memória como gosma tóxica. Isso, apesar da saturação visual com a qual a Humanidade decidiu conviver. Levantamento recente citado pela “New Yorker” indica que 700 milhões de fotos e vídeos são compartilhados a cada dia através do Snapchat. E cem horas de vídeos novos se somam a cada minuto ao pantagruélico acervo visual do YouTube. Sem falar nas 30 mil imagens também novas que alimentam o Instagram a cada 60 segundos.

 

Para a cepa terrorista islâmica do Estado Islâmico (EI), cujos métodos e intenções se tornaram a assombração maior dos serviços de inteligência ocidentais, a capitulação universal a essa forma de comunicação tentacular é uma bênção. Ciente de que a publicidade é o oxigênio do terrorismo, o autoproclamado EI tem usado o recurso com aterradora maestria.

 

Impossível apagar da memória a degola quase didáticafria, calma, “limpa”, no tempo estipulado pelo produtor da cena — dos dois jornalistas americanos executados dias atrás. O ritual postado ao vivo pelo Isis nas redes gerou o impacto desejado: horror, incredulidade, pavor.

 

E foi executado com o máximo de rigor espetaculoso. A figura do terrorista/protagonista era imponente, com vestes e máscara negras, além da cartucheira de couro claro e a faca reluzente na mão esquerda. A paisagem desértica, quase lunar, não parecia feita para ter vida. E a vítima de joelhos à frente do seu carrasco, com as mãos atadas nas costas, coberta apenas por uma humilhante bata cor de laranja rouba-lhe qualquer contorno físico. Após uma solene invectiva verbal contra os Estados Unidos, na qual se dirige diretamente a “Obama”, o ninja do EI calmamente fixa uma mão no pescoço de James Foley e lhe corta a garganta com a outra. Na imagem seguinte, a cabeça do jornalista aparece colocada sobre o seu corpo estendido no chão. O ritual no caso de Steven Sotloff , decapitado semana passada, foi idêntico. Mais de um milhão de internautas acessaram a ferramenta de busca do Google para tentar encontrar a cena da decapitação.

 

Em vão. Ao contrário das barbáries mostradas no ano passado no presídio maranhense de Pedrinhas, e que este ano fizeram outras 15 vítimas, o EI parece preferir não poluir a controlada cena com a fisicamente caótica separação da cabeça de um tronco.

 

“O que quer que esses assassinos imaginam obter ao matarem inocentes”, disse um aturdido Barack Obama semana passada, “eles fracassaram”. Em termos: mais de dois meses a organização desse grupo terrorista está no topo da lista de preocupações ocidentais. Ao contrário da crise na Ucrânia, do estranhamento entre a Otan e a Rússia e do impasse em torno do programa nuclear iraniano, as características do EI excluem qualquer possibilidade de negociação ou recurso diplomático.

 

Não é de hoje que estudiosos debatem se o terrorismo deve ser considerado um meio ou um fim em si. O analista francês em estratégias e relações internacionais François-Bernard Huyghe define terrorismo comoexceção e exemplo”. O ato se alimenta da atenção ao espalhar o medo e tem êxito proporcional à sua capacidade de comunicação. A bomba que explodiu na véspera do Natal de 1800 numa ruela parisiense por onde passava Napoleão Bonaparte (o atentado contra ele não o atingiu) não é muito diferente de um ataque à bomba numa rua de Jerusalém. Exceto pela instantânea disseminação da notícia nos dias de hoje.

 

Foi uma caminhada e tanto. Na Europa do século XIX foram inúmeros os atentados, sempre anônimos, contra donos de terras e regicidas. À época ainda se lamentavam vítimas inocentes, e o registro dos atos acabava confinado em gravuras. Na leva seguinte, que vai até o início da Guerra de 1914, é o discurso anarquista e o nascimento de organizações internacionais que marcam os atos de terror, com seus autores começando a adquirir notoriedade. A esse ciclo sucede um discurso terrorista de tom claramente nacionalista, inaugurado pelo Exército de Libertação Irlandês e adotado pelos militantes da descolonização dos anos 1960. Data desse período a deliberada intenção de atingir vítimas anônimas em grande quantidade para aumentar a repercussão do ato.

 

Coube ao teórico canadense da comunicação Marshall McLuhan fazer uma de suas previsões depois de acompanhar pela televisão a primeira cobertura maciça de um ato de terror — o ataque de encapuzados palestinos do Setembro Negro contra atletas israelenses que participavam dos Jogos Olímpicos de Munique, em 1972. “O satélite vai espalhar a paranoia terrorista mundo afora e aperfeiçoar os atos de violência”, acertou McLuhan.

 

De fato, o terrorismo em forma de espetáculo apareceu e teve seu apogeu no 11 de setembro de 2001, quando as torres gêmeas do World Trade Center de Manhattan foram destroçadas pelos militantes suicidas da al-Qaeda. O devastador ataque à maior potência mundial por um grupo que operava de cavernas lhes deu uma vitória inesperada: o governo de George W. Bush aceitou o embate. Ao declarar guerra a um inimigo genérico, atacar o país errado e usar uma lógica militar equivocada para a equação, Bush deixou de dar uma folheada no livro “What terrorists want: understanding the enemy, containing the threat” (em tradução livre, “O que os terroristas querem: compreender o inimigo e conter o perigo) , da diretora do Instituto Radcliffe de Estudos Avançados, Louise Richardson. Pena. O último dos sete pontos com os quais a autora define terrorismo teria sido de serventia: “Os terroristas são mais fracos do que seus inimigos. É por isso, aliás, que abraçam o terrorismo.”

 

A parte mais polêmica do livro hoje se confirma: “Não foi o atentado do 11 de Setembro que mudou o mundo. Foi a reação dos Estados Unidos ao 11 de Setembro que mudou o mundo.” E não para melhor.

 

Se olharmos para o mapa da Síria e do Iraque em frangalhos, a erupção do EI nesse cenário de violência apocalíptica e a adesão de centenas de jovens da Europa Ocidental e dos Estados Unidos ao chamamento dos degoladores de ostentação, fica claro que não uma resposta única para combater o surto de barbárie. Antes, é preciso compreendê-lo.

 

Dorrit Harazim é jornalista