Um grito de sanidade

 

Estados Unidos são o único país civilizado com uma média de três armas por domicílio

 

Os milhares de moradores de uma comunidade adjacente ao campus da Universidade da Califórnia, em Santa Barbara, haviam se reunido para prestar homenagem às seis vítimas da 64ª chacina com armas de fogo ocorrida nos Estados Unidos nos últimos 30 anos.

 

Desta vez, a matança foi em Isla Vista, na sexta feira, 23 de maio. Por volta das nove horas da noite, um jovem de 22 anos abriu fogo a esmo numa das ruas mais frequentadas pelos universitários. Depois suicidou-se em sua BMW preta, na qual a polícia encontrou três pistolas semiautomáticas, todas compradas legalmente, e mais de 400 cartuchos de munição. Antes de sair de casa, Elliot Rodger, o jovem matador, havia eliminado seus três companheiros de alojamento. Matou-os a facadas enquanto dormiam, possivelmente dopados.

 

Por que Chris morreu?”, bradou com voz contorcida Richard Martinez no início do tributo ao filho Christopher, de 20 anos. “Chris morreu por culpa da covardia e da irresponsabilidade dos políticos e da NRA (sigla da poderosa Associação Nacional do Rifle americana). Quando vai parar esta insanidade? Quando o país vai dizerparem com essa loucura?’”

 

Não foi apenas um grito de dor solitário. As palavras daquele homem de meia idade, transtornado pela ferida que carregará enquanto viver, soou como um chamamento coletivo, um grito à razão em nome da vida.

 

A leitura de partes do manifesto de 141 páginas do diário-autobiografia escrito por Elliot revela ideias fantasiosas sobre poder, privilégio, raça e gênero. Inconformado pelo fato de ainda não ter conseguido perder a virgindade, ele tinha surtos psicóticos de ideologia misógina, apesar de tratado por uma plêiade de profissionais de saúde mental. No último dos inúmeros vídeos que postou no YouTube, intitulado “O dia da retaliação de Elliot Rodger”, narrava com serenidade de louco os detalhes de seu plano de vingança.

 

Elliot logo foi apontado como protótipo da misoginia e sexismo rampantes na sociedade em geral (não apenas na americana) e tratou de turbinar as mídias sociais através da hashtag #YesAllWomen. O desequilíbrio psicológico do jovem matador, que se definia como “a imagem da beleza e da supremacia”, também foi atribuído a uma difusasíndrome do direito do macho branco”. Vale registrar , no entanto, que Elliot era eurasiano por parte da mãe, uma chinesa da Malásia, e pintava o cabelo de loiro.

 

Simplificar a identidade e experiência do jovem desajustado em termos binários, quando ela esconde complexidade maior, acaba eludindo a questão central da tragédia: a cultura da posse de arma na vida americana.

 

Outras raças e culturas também tratam a mulher como propriedade — vide o apedrejamento à morte pelos próprios familiares da mulher grávida, ocorrido esta semana no Paquistão, ou o recente rapto de 300 escolares na Nigéria —, mas os Estados Unidos são o único país civilizado com uma média de três armas por domicílio.

 

Ao perceberem o impacto do grito quase primal de Richard Martínez, muitos políticos o contataram para expressar-lhe sentimentos. A resposta vinha curta: “Não quero ouvir suas condolências. trabalhar e faça algo.”

 

A entrevistadores que lhe queriam arrancar soluções, o pai de Christopher respondia com revolta incontida. “Meu filho morreu poucos dias atrás e vocês esperam respostas de mim? Essa é uma questão complexa que envolve doenças mentais, violência armada e violência contra a mulher. grandes especialistas em cada área dessas. Por que os políticos não os chamam e os ouvem? Elegemos representantes e os investimos de poder. Mas são um bando sem princípios que se curvam diante da NRA.”

 

Outras nações modernas, como o Canadá e a Grã-Bretanha, às voltas com chacinas semelhantes, evoluíram mudando as leis.

 

É da Austrália que vem o exemplo mais eloquente. Seis meses após assumir o cargo de primeiro-ministro, em 1996, o conservador John Howard recebeu uma notícia que abalou a nação. Um homem psicologicamente perturbado usara um rifle semiautomático e uma arma de assalto SKS para matar de uma vez 35 pessoas em Port Arthur, no estado da Tasmânia.

 

Eleito por uma coligação de centro-direita com apoio irrestrito do eleitorado não urbano adepto de armas, Howard agiu rápidodecidiu usar a autoridade do cargo para tratar logo do assunto e limitou a posse das semiautomáticas.

 

Sabia que a medida teria alto custo eleitoral. E teve. No ano seguinte sua coligação foi derrotada em eleições locais, com o partido populista vencedor ameaçando reverter o banimento. Ainda assim, Howard não cedeu. Ameaçou submeter a questão a referendo popular para alterar a Constituição e dar poderes ao governo federal na questão do desarmamento.

 

Resultado: 700 mil armas em mãos de civis (equivalente a 40 milhões, se fosse nos Estados Unidos) foram entregues às autoridades. 18 anos a Austrália não registra uma chacina com armas de fogo banidas.

 

Ninguém desconhece as profundas diferenças entre os duas nações. A começar pela Bill of Rights, inexistente na Austrália, que desde 1791 assegura ... “o direito do povo de manter e portar armas...” e até hoje serve de escudo ao lobby da NRA.

 

11 anos seguidos a venda de armas cresce nos Estados Unidos sem sinal de criseem 2013, o aumento foi de 9%. Para 2014, a expectativa é ainda mais radiosa com a campanha “O ano da mulher”, promovida pela indústria do ramo para atrair o filão feminino.

 

Ainda assim, alguns estados como Connecticut, Nova York e a própria Califórnia avançaram alguns passos visando a dificultar pelo menos a compra de semiautomáticas por condenados por delitos violentos. É o mínimo do mínimo.

 

Em tempo: na mesma semana da matança em Isla Vista quatro escolas americanas de estados diferentes receberam ameaças de iminente fuzilaria.

 

Dorrit Harazim é jornalista