Manning
e Assange são acusados do
crime de divulgar crimes
Daniel
Aarão Reis
Daqui a dias,
Julian Assange completará dois
anos de confinamento na Embaixada do Equador em Londres,
onde se refugiou, em 18 de junho de 2012. Ali vive como um prisioneiro, apertado num pequeno escritório adaptado, onde dispõe de cama, telefone, computador, chuveiro, quitinete e uma esteira para fazer
exercícios. Em volta do prédio, a polícia monta guarda
com um custoso dispositivo:
nos primeiros meses, gastaram-se US$ 4,5 milhões para vigiá-lo.
Assange
é objeto de dois processos. O primeiro refere-se a um imbróglio em que
se envolveu na Suécia, onde duas
mulheres o acusam, desde agosto de 2010, de “comportamento não consensual em encontros sexuais
consensuais”. Requerida sua extradição, seguiu-se uma batalha
jurídica que se prolongou por quase
dois anos. Perdendo o último recurso, ele solicitou
asilo ao governo equatoriano. E o fez, não por temor
às eventuais consequências deste primeiro processo.
O
que o preocupava — e o preocupa até hoje
— é o segundo, bem mais tortuoso e perigoso. Quem o persegue, embora ainda não de forma oficial, é o governo dos Estados Unidos, que deseja inquiri-lo
sobre os documentos confidenciais cedidos à ONG Wikileaks,
da qual Assange é um dos editores, e que se dedica a divulgar relatórios secretos que evidenciem malfeitos que estados
e empresas tentam esconder.
A
narrativa que se segue evidencia que os
receios do perseguido têm fundamento.
Quando vieram à luz, os documentos
provocaram sensação, sobretudo os registros
referentes às guerras conduzidas pelos EUA no Iraque
e no Afeganistão. Milhões
de pessoas puderam ler e ver (havia
também filmes) crimes praticados por soldados estadunidenses, entre os quais assassinatos,
acobertados pelas cadeias de comando. Já nos telegramas
diplomáticos, apareceram manobras escusas e manifestações explícitas de hipocrisia, dessas que permanecem para sempre no olvido da história
ou, na melhor
das hipóteses, são conhecidas apenas dezenas de anos depois.
Reagiram com sagrada ira os homens
honrados envolvidos, porque “so are they all, all honourable
men” (assim são todos eles, todos
honrados homens), na indignada fala
— amargamente irônica — atribuída por Shakespeare a Marco
Antônio, sobre os assassinos de Júlio César.
A
divulgação daqueles papéis confidenciais era “ilegal”, e mais: um “ato terrorista”. De qualquer forma, uma “traição”. Na precipitação, houve gente clamando
pela execução de Assange,
sob os auspícios de uma Lei contra a Espionagem, de
1917, que prevê a pena de morte para
os que entregam
informações ao inimigo.
A
fonte dos segredos revelados foi logo identificada: o soldado Bradley
Manning, denunciado à polícia
por um triste dedo-duro, já caído
em merecido ostracismo.
Preso em 27 de maio de 2010, no Iraque, onde estava, levaram
Manning para Quantico, uma
base dos fuzileiros navais
no Estado de Virgínia. Ali foi
tão barbarizado que Juan E. Mendez, encarregado
especial da ONU para denúncias relativas à tortura, descreveu as condições da cadeia como
“cruéis, desumanas e degradantes”. Em janeiro de 2011, a Anistia Internacional apoiou Mendez. Em março, o próprio
porta-voz do Departamento
de Estado, Philip J. Crowley, criticou o tratamento dispensado ao preso e renunciou
ao cargo. No mês seguinte, centenas de acadêmicos assinaram uma petição no mesmo sentido, denunciando violações da Constituição dos Estados Unidos. Manning ainda teve que
suportar outros vexames, decorrentes de solicitação de assistência médica para mudança
de sexo — desde agosto do ano passado,
por se sentir mulher, quer ser tratada como tal
e já mudou, inclusive, de nome, para Chelsea Manning, mas suas demandas
chocam-se com a insensibilidade
dos carcereiros que se escudam no fato de que os códigos
militares não preveem a figura do “transgênero”.
O
julgamento foi rápido e a sentença, brutal: 35 anos de prisão, decidida em 21 de agosto de 2013.
Manning
e Assange são acusados do
crime de divulgar crimes. De nada valem
seus argumentos de que desejam uma
discussão mundial, aberta e “esperançosa”, que pudesse ensejar
reformas, sem as quais, como disse
Manning no tribunal, “estamos condenados
como espécie”. Estas frágeis e verdadeiras palavras, porém, suscitam, entre as autoridades, apenas acusações e condenações. Para elas, os dois
não passam de traidores e mentirosos.
Esplêndidos mentirosos!
Assim referiu-se Horácio a Hypermnestra, a única danaide, entre 50, que mentiu ao
pai — e o traiu — pelo nobre sentimento
do amor. Os deuses a perdoaram, assegurando-lhe reconhecimento em vida e, depois da morte, pela
eternidade, acesso aos Campos Elíseos, o paraíso dos antigos gregos.
As
pessoas livres e que amam a liberdade
não podem, infelizmente, oferecer a Manning
e a Assange nenhum paraíso,
mas lhes ofertarão o que têm de melhor: a solidariedade. E palavras de admiração, coragem e amizade.
Daniel
Aarão Reis é professor de História
Contemporânea da UFF
daniel.aaraoreis@gmail.com