Gente como a gente
Bush
sancionou a revogação da medida e Nelson Mandela deixou de constar da lista da
Homeland Security
DORRIT HARAZIM
15/12/13
Vaia e ovação devem ser as duas únicas palavras do vocabulário humano que qualquer político
— independentemente de país,
partido, regime, língua ou ideologia — entende. Elas dispensam
intérpretes, a mensagem é
universal. E o efeito de ambas
é instantâneo.
Na
vaia a expressão facial do alvo tende a se petrificar, enquanto os ouvidos flamejam
e a duração do retumbo nunca parece menor
do que uma eternidade. Na ovação espontânea, cada vez mais rara
na esfera política de hoje, convém saber dosar a ufania e os agradecimentos
— sobretudo se a ovação tiver ocorrido de surpresa, diante de pares que morrerão de inveja.
Tudo isso, e algo mais, pôde
ser observado na cerimônia que reuniu
mais de 60 chefes de Estado
ou de governo no estádio Soccer City de Johannesburgo
para o memorial a Nelson Mandela no início da semana.
A
estrondosa vaia que desaguou sobre
a figura do presidente sul-africano Jacob Zuma das arquibancadas e que pareceu constranger vários dignitários presentes, por ter ofendido o espírito de harmoniosa unanimidade do evento, pode muito bem
ser vista sob ótica inversa.
A possibilidade de o povo sul-africano vaiar em público e sem
medo a autoridade máxima do país, tida como corrupta,
representou uma homenagem a Mandela mais significativa do que a que ocorria no palanque oficial. Seria impensável cidadãos sul-africanos da era pré-Mandela acharem que poderiam
levantar a voz impunemente contra o presidente da nação — nem
mesmo se fossem brancos.
Quanto à animada ovação que a mesma
arquibancada reservou para Barack Obama, e somente para ele, seu
antecessor na Casa Branca talvez se sentisse merecedor de pelo menos um aplauso. Nem que fosse um só, camuflado. George W. Bush, também presente ao estádio, tinha
motivos para rememorar uma iniciativa
sua de 2008 que sempre o orgulhou.
Poucos no Soccer Stadium deviam
saber que o nome de Nelson
Mandela só foi retirado da lista
de terroristas elaborada pelos serviços de segurança americanos em julho de 2008, poucas semanas antes de ele completar 90 anos. Até então,
a cada vez que quisesse viajar
aos Estados Unidos ou participar
de reuniões na ONU, era obrigado a solicitar uma declaração específica de Washington atestando
o contrário. O mesmo se aplicava a outros membros do partido African
National Congress (ANC).
A
emissão dos atestados era tarefa pessoal e intransferível do titular da
pasta de Relações Exteriores
— na época, Condoleezza
Rice, secretária de Estado de George W. Bush, então no seu último
ano de governo antes da eleição de Obama. “Não me sinto à vontade redigindo esse tipo de declaração
para quem ocupa o mesmo cargo que eu e ainda
menos para alguém do porte de Nelson
Mandela”, informou Rice ao solicitar a uma comissão do Senado o levantamento das restrições a todo o ANC.
Três meses depois, Bush sancionou a revogação da medida
e Nelson Mandela deixou de constar
da lista da Homeland Security. Era tempo. Fazia
18 anos desde que saíra como
homem livre de Robben Island, 15 desde que recebera o Nobel da Paz e uma década
desde que deixara a Presidência do país.
A
julgar pela leitura de suas memórias, a bronca de Mandela com
o anticomunismo visceral de Ronald Reagan, responsável pela sua inclusão na
fatídica lista nos anos 1980, era menor do que sua
aversão pela era Margaret
Thatcher. Nos Estados Unidos de Reagan, William Buckley, um dos comentaristas conservadores mais conceituados, opinava nos seguintes
termos sobre a libertação do líder negro em 1990: “Ainda chegará o dia em
que a soltura de Mandela será comparada à chegada de Lenin à Estação Finlândia em 1917.” Na Inglaterra de Thatcher, porém, o
tom era mais direto:
“Nelson Mandela deveria ser morto”,
declarou um deputado do partido do governo no Parlamento. Quando Mandela declinou um encontro com Thatcher
durante uma visita a Londres, outro deputado conservador deixou registrada sua indignação oficial: “Até quando a primeira-ministra
vai permitir que esse terrorista
preto a ofenda?”
Águas passadas. De retorno aos Estados
Unidos a bordo do Air Force
One, um presidente (Obama), dois
ex-presidentes (Bush e Bill Clinton) e uma possível futura
candidata a presidente
(Hillary Clinton) tiveram tempo de sobra para talvez
pensar em vaias ou aplausos.
Ou talvez se entediar durante as 16 horas de voo. Afinal,
são gente como a gente. Tanto
assim que para matar o tempo Bush sacou o seu iPad
e submeteu os companheiros de viagem à exibição dos quadros que anda pintando
desde que deixou a Casa Branca.
Talvez fosse um singelo
recado para Obama: o poder acaba.
Em tempo de chuvas
e vaias
No
dia seguinte à desastrosa evidência de que a obra da
Via Binário fora feita sem o adequado
sistema de drenagem, o prefeito do Rio extravasou sua indignação apontando para terceiros: “É uma falha inadmissível”, declarou. É. Mas a frase só faria
sentido se Eduardo Paes estivesse falando na qualidade de cidadão comum, expressando a indignação dos demais cariocas diante dos descaminhos do prefeito dos Grandes Eventos — Eduardo Paes.