'Shutdown'
Hermano Vianna
Diante do apagão do
site da Nasa, percebi que aquela
realidade não tinha nada de virtual
Eu também recebi o spam avisando que, dia 13 de novembro, a Nasa faria anúncio de “descoberta que vai chacoalhar a Terra, ela nunca mais
será a mesma”. Claro que nem por
um segundo acreditei na autenticidade do comunicado. Mas achei divertido imaginar que notícia
poderia provocar tal comoção. A data exata do fim do mundo? A confirmação de que ETs vivem
entre nós? A localização da morada de Deus na galáxia espiral
NGC 4414? Resolvi visitar o
site da Nasa para ver como
desmentia oficialmente o
rumor viral. Chegando lá me
deparei com texto que realmente abalou
minhas estruturas terráqueas. Nunca pensei que leria
algo semelhante durante minha existência
neste planeta.
A
nota era curta e grossa. Em inglês: “Due to the lapse in
federal government funding, this website is not available. We sincerely regret
this inconvenience.” A tradução em
espanhol era mais dramática: “Este sitio web no se está disponible durante el cierre del Gobierno. Lamentamos profundamente las molestias que esto
pueda causar.” A “interrupção do financiamento governamental” virou “fechamento do governo”, a “inconveniência” se transformou em “moléstia”. Nunca, nem em
manifestos dos anarquistas mais
radicais, encontrei essa possibilidade de um governo — e logo o governo dos EUA — poder “fechar”
sem revolução nenhuma. Tudo me parecia abstrato nas notícias dos jornais lidas daqui
do Brasil (o impasse continua do momento
em que finalizo
este texto). Porém, diante do apagão do site da Nasa, percebi que
aquela realidade não tinha nada de virtual
Um
link abaixo da nota nos encaminhava para o USA.gov com informações sobre serviços disponíveis durante o government
shutdown (termo oficial). Respirei aliviado ao saber, por exemplo,
que, apesar de a Estátua da Liberdade
não poder receber turistas, os astronautas da Estação Espacial
continuam a receber suporte. Outras consequências são mais graves: “Centenas de milhares de funcionários federais — incluindo muitos encarregados de nos proteger de ameaças terroristas, defender nossas fronteiras, inspecionar nossa comida e manter nossos céus
seguros — vão trabalhar sem remuneração
até o shutdown terminar.” Não havia nenhuma
referência à continuidade ou não dos serviços
antiprivacidade da NSA (a Agência de Segurança Nacional local) denunciados por Edward Snowden (sei que ganhou
um prêmio esta semana, mas o que
ele anda fazendo mesmo na
Rússia de Putin?)
Fico
cada vez mais impressionado com os desdobramentos desse caso, agora também abalando as relações entre o Brasil e o Canadá. Onde vamos
parar? Fechamento governamental mundial? Shutdown da internet? Volto sempre a dois artigos
antigos (algo publicado em julho
já é descoberta arqueológica) que me parecem as maiores ajudas para entendermos
nosso momento. O primeiro é de John Naughton,
professor de “compreensão pública
da tecnologia” na Open University britânica. O título é bem adequado:
“Snowden não é a notícia, o
destino da internet é”. Um
dado sublinhado nesse texto, que poucos
outros analistas comentaram com profundidade, é a terceirização da espionagem, com Estado contratando
empresas privadas para capturar/interpretar
o Big Data. Snowden não era funcionário
público, mas sim empregado da
Booz Allen Hamilton, megacorporação comercial. Que governo (agora ainda fragilizado por shutdowns inéditos) pode garantir que companhias
poderosas não usem esses dados secretos em outros
negócios particulares?
Outro texto de leitura obrigatória leva a assinatura de George Dyson
(filho de Freeman, irmão da Esther — família bacana), historiador da tecnologia, autor do excelente “Turing’s
Cathedral” sobre a invenção
dos primeiros computadores ao redor da
turma de John von Neumann, na
Princeton pós-Segunda Guerra. Essa
relação da tecnologia com guerra e espionagem é antiga e intrincada. Dyson, no texto “NSA: the decision problem”, lembra
o Corona. Sem esse programa secretíssimo de utilização de satélites para fotografar a União Soviética no tempo da Guerra Fria, que também contratava empresas comerciais do Stanford
Industrial Park, provavelmente não
teríamos o Vale do Silício ou — que peninha
— o Google Earth.
Diferença dos dois segredos da NSA:
na Guerra Fria havia um inimigo bem determinado;
na guerra contra o terrorismo (desculpa para a espionagem atual, mesmo que
— dados citados por Michel Serres questionando a “indústria do medo” — atos terroristas matem 15 mil pessoas por ano, número
bem menor que o 1 milhão de vítimas de acidentes de carro) tudo é difuso,
somos todos vigiados. Terrível mundo que precisa
da ameaça de guerra para impulsionar
avanço tecnológico. Quando vamos aprender
a inventar progresso a partir da paz?