Republicanos: homens-bomba da América
Arnaldo Jabor
A
reação da ‘silent
generation’, passiva e ignorante,
era a mesma dos fundamentalistas
do Tea Party hoje
Estamos vendo hoje a loucura da América republicana.
Eles topam destruir o país para impedir um bom governo para
o Obama. Os republicanos estão
provando que são os homens-bomba
americanos. Morrem junto com o calote da dívida, com a crise profunda que estão programando,
mas nem se tocam. Não conseguem
aceitar o plano de saúde, uma espécie
de SUS, o “Obamacare”, para proteger 30 milhões de americanos que não têm
seguro-saúde. Eu já morei nos
USA, antes dos anos 60, no coração
da “América profunda”, na Flórida,
e vi como o americano médio tem a “alma republicana”. A
cidade era igual àquela do “Truman Show”. Ruas, pessoas, rituais, sorrisos e lágrimas, tudo parecia programado
por uma máquina
social obsessiva. A vida e morte eram padronizadas,
previstas: abraços gritados, roupas iguais, torcidas histéricas no beisebol, finais felizes, alegrias obrigatórias, formando uma missão
comunitária cheia de fé, como um carrossel
de certezas girando para um futuro garantido. A violência dos alunos me assustava. Eu era um “nerd” comprido e meio bobo nos
meus 15 anos de virgindade e me chocava com as botas de cowboy marchetadas de estrelas de prata, as facas de mola (“switch blades”)
de onde a lâmina pulava, os casacos
de couro negro que já vestiam a chamada
“juventude transviada”, uma rebeldia reacionária
e “republicana” dos anos de
Eisenhower. Vi brigas de ferozes
galalaus se arrebentando até o sangue no focinho e o desmaio, onde nem os
diretores do colégio podiam interferir, pelo sagrado direito
da porrada, na cultura de vaqueiros
e pioneiros. Não havia espaço para
dúvidas naquela cidade, mas dava
para sentir que aquela solidez
de certezas, se rompida, provocaria um grave desastre. Os ídolos da época
eram Elvis Presley rebolando
na TV e James Dean, cadáver
presente nos gestos e roupas. Pairava um clima de intolerância entre os próprios brancos; eram os fortes contra os fracos, eram
as meninas bonitas contra
as feias, eram as sérias contra as “galinhas”. Eu, turista tropical, era um tipo misterioso; tímido, fraco, mas, como era estrangeiro
e falava bem inglês, provocava um respeito cauteloso e os machões me poupavam
por minha habilidade em dar-lhes
“cola” em “spelling”, soletrando
palavras de raiz latina que, para
eles, eram enigmas.
Algumas meninas saíram comigo para
beijos na boca e nada mais, claro. Mas Brenda, mais pirada e sexy, me largou e sumiu com Warren Caputo,
italiano que tinha um “hot rod” com pneus de trator. Eu não
era “legível” para eles. Eu navegava
naquela cultura obsessiva e, bem ou mal, conseguira namorar Melinda Mills, loura pálida, filha de um “ex-marine” que estivera no Rio durante a guerra e que me mostrou um cartão-postal do Mangue, onde ele certamente
conhecera a zona e as polacas. Melinda me amava, ela também frágil
e boba, e nos beijávamos no cinema onde assistimos a “An affair to remember” — lembro-me.
Mas havia uma outra América
dentro da cidade: os negros.
Eles passavam de cabeça baixa, o rosto torcido de humilhação, num ódio sufocado e inútil. Amontoavam-se no fundo dos ônibus, em pé,
mesmo com os carros vazios, e moravam num bairro de madeira e terra, perto do braço de mar onde os barcos pesqueiros
de camarão fediam. Aquela injustiça me espantava pela falta total de compaixão, eu que vinha
de babás negras me beijando, eu que
amava as mulatas cariocas lindas que já povoavam
meus desejos aos 15 anos. Eu
só via gente negra moldada por
sofrimento e exclusão, disformes, deprimidos, frágeis mulheres engelhadas, jovens pretos trêmulos e esfarrapados. No ônibus amarelo do colégio, meus colegas louros,
ruivos e brutos berravam contra os negros que passavam:
“Hey, ‘nigger’, por que teu nariz é tão
chato? Hey, ‘nigger’, por que teu cabelo
é pixaim?” Depois, na época da
“integração racial”, vi os mesmos negros sendo
espancados pela ousadia de se banhar em piscinas públicas,
onde aqueles brancos do meu passado jogavam ácido para queimá-los.
Eu tinha medo era dos brancos.
Até que um dia, chegou a notícia
devastadora. Tinha subido aos céus
o satélite russo, o
“Sputnik”, girando como uma bola de basquete em órbita da
Terra. Pânico na cidade. Desde 49, quando a Guerra Fria começou, com
a explosão da bomba H pelos soviéticos,
destronando a liderança dos
destruidores de Hiroshima, os
americanos esperavam outra catástrofe, que viria quase
como um filme de ficção cientifica como a “A invasão dos feijões gigantes”. Em minutos, a cidade
parecia um campo de refugiados,
de perdedores, com cabeças inchadas, humilhados pelos comunistas invasores. No colégio, começaram “fire drills” incessantes,
alarmes evacuando os alunos para
porões e abrigos atômicos. O então senador Lyndon Johnson berrou: “Brevemente estarão jogando bombas atômicas sobre nós, como pedras
caindo do céu...”
No
alto, o satélite Sputnik humilhava
os americanos, com seus “bip bips”
como gargalhadas de extraterrestre. A partir desse dia, lá
embaixo, na cidadezinha da Flórida, eu mudei.
Não para mim, mas para
os outros.
Os
colegas porradeiros me investigaram com perguntas: “Que você acha?
Teu país gosta dos russos?” Eu tremia e escondia
minha vaga admiração juvenil pelo socialismo. Eles me olhavam desconfiados: brasileiro, latino, sabe-se lá? Depois disso, não me pediam mais
cola de palavras, mal me olhavam.
O pai de Melinda, putanheiro
do Mangue, não me cumprimentou de sua poltrona esfiapada. Melinda ficou mais pálida
e nosso namoro definhou. Há muitos
anos, eu vi o “choque e pavor” da América profunda.
Essa era a época da chamada “silent generation”, passiva e ignorante. Sua reação é a mesma dos fundamentalistas do Tea
Party hoje. Sempre que algo acontece
fora de seu controle, eles bloqueiam o presente e querem voltar ao
passado. São mais perigosos que os
islamitas guerreiros, que explodem trens
e aviões mas não destroem a economia mundial por rancor, vingança e racismo, como os
pequenos canalhas que humilhavam os negros na
Flórida quando eu apareci por
lá. Vamos aguardar os idos
de novembro, quando uma nova recessão pode ameaçar o Ocidente.