Pedro
Doria
Ao deter por nove horas David Miranda, o governo britânico desceu ao nível
de Cuba, Rússia e Irã
Há algo de profundamente chocante na detenção por
nove horas do carioca David
Miranda no aeroporto de Heathrow, próximo
a Londres, no último domingo. Legalmente, a polícia britânica tem o poder de reter suspeitos de envolvimento com terrorismo por esse tempo sem autorização judicial, sem que precise se explicar. Marido do repórter Glenn
Greenwald, que no diário
The Guardian e aqui no GLOBO
denunciou o invasivo sistema de espionagem dos EUA, Miranda não foi detido por
ser suspeito de terror. Foi
detido para que seu marido
fosse intimidado. Um Estado que
usa sua força
descomunal para pressionar pessoas não é raro. De quase democracias como a Venezuela chavista e a Rússia de Putin passando por incontáveis ditaduras escancaradas, acontece a toda hora. Quando é o governo britânico que cruza essa
linha, o espírito do totalitarismo está se espalhando.
Greenwald
entrevistou o ex-agente da CIA e da NSA
Edward Snowden, revelando o sofisticado
sistema que permite acompanhar o que ocorre na
internet. Snowden, um cidadão americano,
cometeu um crime. Talvez possa ser enquadrado na categoria de “whistleblower”, aquele que sopra
o apito, que vaza informação secreta a que o público não deve
ter acesso. Isso só a Justiça
do país poderá decidir.
A
reação do governo americano foi violenta.
Interveio no país que pôde para
evitar a concessão de exílio para Snowden. Quando desconfiou que o presidente boliviano Evo Morales o carregava em seu avião,
forçou o pouso da aeronave ao
manobrar para que Espanha e Portugal negassem autorização de entrada no espaço aéreo. É no mínimo inusitado tratar de forma assim grosseira um chefe de Estado. Quando o presidente russo Vladimir Putin concedeu asilo provisório a Snowden, Obama cancelou
um encontro. Na linguagem diplomática, é um gesto extremo, ainda mais se levarmos em conta que
EUA e Rússia são as duas maiores
potências nucleares do mundo, de quem se espera temperança.
Snowden
revelou muito pouco. Tão pouco,
aliás, que é impossível realmente entender como funciona
o sistema de espionagem dos
EUA. Talvez Washington creia que ele
sabe mais e que pode revelar
a nações estrangeiras outros detalhes. Talvez o motivo seja outro: quer
fazer dele um exemplo. Fato é que, justificadamente
ou não, a reação ao vazamento
não parece ter limites.
A
liberdade nasceu no Ocidente. É uma invenção cultural nossa. A liberdade da opressão
do Estado começou em 1215, justamente na Inglaterra,
quando um grupo de barões impuseram ao rei João
a Magna Carta, um documento
que tirava de sua Majestade, entre outros, o direito de fazer prisões arbitrárias.
A Revolução americana, que criou a primeira
democracia moderna já embalada pelos
pensadores liberais do Iluminismo, é descendente direta daquele documento inglês. E foi justamente em solo inglês que, no domingo, David foi detido porque
o governo britânico queria enviar um recado. Segundo o Guardian, os EUA haviam sido
informados de que a detenção poderia ocorrer. Não está
claro se houve incentivo ou não.
No
Reino Unido, a imprensa reagiu com indignação. Snowden pode ter cometido um crime. Greenwald
é um repórter. O mensageiro.
Segundo a legislação de boa parte das democracias plenas, se não de todas elas,
ele não cometeu
qualquer crime. Seu marido, que sequer
participou da entrevista, muito menos. O governo cubano pressiona familiares para ameaçar quem persegue.
O governo chinês também o faz. Ponha-se
na lista o governo britânico.
O
Reino Unido não é uma ditadura.
A qualidade de sua democracia, porém, será conhecida nos próximos dias
e semanas. O Parlamento irá questionar o gabinete de David Cameron. A imprensa
irá averiguar de onde veio a ordem.
Alguém na polícia terá de se explicar. A legislação que permite este
tipo de abuso pode ser revisada. Haverá movimento, reação. Num Estado de leis, abusos
ocorrem. Mas não ficam impunes.
Esta é a diferença.
Enquanto isso, nos EUA, cada
nova revelação mostra o quanto das leis americanas foram quebradas pela NSA. É um período triste.
Pedro
Doria pedro.doria@oglobo.com.br