Bravo mundo novo
Mesmo sendo um espaço desprotegido da irresponsabilidade, a internet
é a celebração da liberdade individual
Cacá Diegues
No
dia 29 de setembro de 2010,
o diário francês “Libération”, fundado por Jean-Paul Sartre, publicava denúncia que se tornaria um grande escândalo em toda
a imprensa europeia. Em sua primeira
página, o “Libé” dizia que misterioso
vírus invadira o programa atômico do Irã e o presidente Ahmadinejad responsabilizava os serviços secretos israelense e norte-americano pelo caos instalado
em centrífugas nucleares e computadores que controlam a infraestrutura do país. O vírus era imune a qualquer programa para eliminá-lo e nunca se conseguiu determinar de onde ele de fato viera.
Embora alvo de justa indignação, a espionagem internacional através de sofisticados processos cibernéticos já deixou, há
muito tempo, de ser novidade
no chamado concerto das nações.
Ela é apenas um avanço tecnológico no sistema de escuta que nações exercem
sobre outras, desde sempre. Sobretudo
quando as que espionam são mais
poderosas e têm mais interesses fora de seu território
do que as que são espionadas. Cada vez que
surge um escândalo desse,
nada muda no mundo, a não ser a venda de “1984”, de
George Orwell, com seu Grande Irmão
que tudo vê.
O
que é novo e digno de atenção é que não
se trata mais apenas de espionagem militar, política ou econômica, mas
do escancaramento de um mundo
em que a privacidade deixou de existir, desde que Tim Bernes-Lee inventou a internet, um sistema
digital de relacionamento que
pudesse sobreviver ao apocalipse atômico,
previsto como inevitável durante a Guerra Fria.
O que quer que acontecesse, todos permaneceriam conectados para sempre, através da rede impossível
de ser desfeita. Como acabou
acontecendo.
Quando você fala em seu
iPhone, alguém que não está
em contato com você poderá saber onde se encontra, em que língua
está falando, quem é seu interlocutor. Nenhum de seus e-mails ou posts em rede
social está isento de publicidade. Eles se acumulam, junto com nossos dados pessoais, na infinita memória
das grandes empresas do ramo, como Google, Gmail,
Firefox, Facebook, Apple, Microsoft, todos esses nomes
que incentivaram involuntariamente uma nova forma de
pensar e que nos deram, junto
com o fim de nossa privacidade, nova oportunidade de
desenvolver o conhecimento
e praticar as relações humanas de um modo diferente.
Hoje, um fabuloso satélite como o Hubble 3D nos revela a existência
de um planeta azul como a Terra, o HD189733, numa galáxia muito distante
do Sistema Solar. No macro ou
no micro, estamos condenados
ao fim de todos os disfarces
e mistérios.
Tudo isso nos leva a um mundo
pós-industrial, onde os valores não
são mais medidos pelos objetos
que fabricamos, mas por algo
que está se organizando através de novos modos de conhecer, pensar e agir. É sobre isso
que devemos refletir, em vez
de simplesmente estigmatizar,
com justa ira, o olhar de Tio Sam sobre nossas jabuticabas.
Assim como a invenção da indústria
não eliminou a agricultura ou o artesanato, a teia pós-industrial não vai eliminar nada do que lhe veio
antes. Vamos sempre acumular a experiência do que vivemos e fabricamos,
com a do que passamos a fabricar e viver.
Mesmo sendo um espaço desprotegido da irresponsabilidade, a internet
é a celebração da liberdade individual e uma progressiva forma de relacionamento
e confraternização. Não é desejável que ela
sofra restrições, seja mantida sob controle de Estados autoritários ou não, desapareça (o que já é impossível).
Para isso, talvez estejamos pagando o preço do risco de exposição de nossas comunidades e de nossas vidas privadas. E é difícil encontrar um meio de evitar essa angústia, talvez tenhamos que aprender, não
sei como, a conviver com ela.
Em vez de reclamar do poder dos outros, construamos nossa própria força.
Tornemos a submissão de nossa identidade às grandes empresas
capitalistas do ramo uma garantia da
liberdade conquistada através da internet. No Brasil, ainda estamos
na infância cibernética, naquela idade em que
mal aprendemos a ler. Mas não nos
basta a alfabetização — precisamos ensinar nossos filhos a entrar no youtube, mas também e sobretudo
a criar seu próprio youtube. Só podemos viver
este mundo novo através daquilo que ainda não
sabemos.
Recentemente, meu neto de 6 anos de idade perguntou de sopetão à mãe se era preciso casar para
ter filhos. Apanhada de surpresa e desconcertada, minha nora balbuciou que não sabia.
Ao que o menino retrucou firme: “Então entra
aí no Google, mãe”. Segundo
o grande neurocientista
Antonio Damásio, “nossa vida política faz
parte da evolução biológica”. Se não conseguirmos compreender isso e construir nossa democracia em cima disso, o sacrifício pessoal de Edward
Snowden terá sido em vão.
*Cacá Diegues é cineaste