Brasil cobra esclarecimentos aos Estados Unidos sobre espionagem
Polícia Federal e Anatel
vão investigar se empresas brasileiras permitiram que a NSA tivesse acesso
às redes locais
Em Paraty, o chanceler Antônio Patriota disse que governo recebeu
a notícia com grave preocupação
FERNANDA KRAKOVICS,
FRANCISCO LEALI E LEONARDO CAZES
7/07/13
BRASÍLIA
e PARATY - O governo brasileiro cobrou, neste domingo, explicações dos Estados Unidos sobre a espionagem de cidadãos e empresas brasileiras pela Agência de Segurança Nacional (NSA) dos EUA na
última década, segundo documentos coletados pelo ex-técnico Edward Snowden, aos quais O GLOBO teve
acesso. O Ministério das Relações Exteriores pediu esclarecimentos ao embaixador dos EUA Thomas Shannon e já acionou a embaixada em Washington para fazer o mesmo diretamente
ao governo americano. O Itamaraty também vai entrar
com uma moção na Organização das Nações Unidas (ONU) pedindo aperfeiçoamento
da segurança cibernética para evitar esse tipo
de abuso por parte de um país. No plano interno, a Polícia Federal e a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) vão investigar se empresas sediadas no Brasil permitiram que a NSA tivesse
acesso às redes de comunicações locais.
O
governo brasileiro também trabalha com a hipótese de os EUA terem monitorado
telefonemas, troca de mensagens e dados na internet por meio de interceptação
de satélites de cabos submarinos.
-
O mais provável é que o monitoramento seja feito pelos
cabos submarinos e satélites. Nas transmissões internacionais e ligações, a maioria dos cabos passa pelos
Estados Unidos - disse o ministro das Comunicações. - Temos muita preocupação com essas notícias, especialmente com o possível relacionamento com empresas brasileiras. Se isso realmente ocorreu, configura crime contra a legislação
brasileira e a Constituição.
Nossa Constituição assegura o direito à intimidade e privacidade. Se tiver empresa brasileira
mancomunada com empresas estrangeiras para quebrar sigilo telefônico e de dados, é um absurdo
- disse o ministro Paulo
Bernardo (Comunicações).
O
Palácio do Planalto utilizará a revelação de monitoramento pelos EUA para tentar
destravar a votação, na Câmara dos Deputados,
do marco civil da internet.
Um dos artigos mais polêmicos do projeto é o que trata da
privacidade dos dados dos usuários
- a guarda dos registros de
conexão - que muitos consideram um fator de insegurança e risco para os
internautas.
O
governo também quer agilizar o envio ao Congresso
de projeto de lei de proteção
de dados pessoais, para garantir sigilo das informações. Atualmente não há legislação
no Brasil que garanta segurança de dados na internet. Em outra frente, o governo vai atuar
em organismos internacionais para que haja uma
governança multilateral da
internet, nos moldes, por exemplo, da
Organização Mundial da Saúde (OMS). Atualmente isso é feito pela
Icann, uma entidade subordinada ao governo dos EUA.
-
Essa é uma questão absolutamente importante, que diz respeito ao
direito das pessoas de se relacionarem e trocarem informações sem serem importunadas - afirmou Paulo Bernardo.
No
início da tarde deste domingo,
o ministro das Relações Exteriores, Antônio Patriota, convocou a imprensa em Paraty,
onde acontece a Feira Literária Internacional, e disse, em declaração
oficial, que o governo recebeu a notícia com grave preocupação.
“O
governo brasileiro recebeu com grave preocupação a notícia de que as comunicações eletrônicas e ligações telefônicas de cidadãos brasileiros estariam sendo objeto de espionagem por órgãos de inteligência
americanos. Solicitamos esclarecimentos ao governo americano por intermédio da embaixada do Brasil em Washington e através do embaixador americano no Brasil”, dizia a nota.
A
reação foi articulada pela presidente Dilma Rousseff, na manhã
deste domingo, em reunião no Palácio
da Alvorada com os ministros Paulo Bernardo (Comunicações), Gleisi Hoffmann (Casa
Civil), Ideli Salvatti (Relações Institucionais), José
Eduardo Cardozo (Justiça), Aloizio
Mercadante (Educação) e
Gilberto Carvalho (Secretaria
Geral da Presidência).
O
que mais preocupou a presidente Dilma é a possibilidade de monitoramento político, comercial e industrial. Na reunião
deste domingo no Palácio da Alvorada
foi discutida a criação de um grande sistema nacional de armazenamento de dados. Dilma e os ministros discutiram
o volume de dinheiro que seria necessário para fazer esse
sistema e o prazo que seria necessário
para implementá-lo.
OAB defende que a denúncia deva ser levada à ONU
Em outra frente, o líder do PSOL, deputado Ivan Valente (SP), pretende apresentar um requerimento, no máximo até terça-feira,
convidando o embaixador americano para dar explicações na Comissão de Relações Exteriores da Câmara. No Senado,
o líder do partido, senador Randolfe Rodrigues, também fará a solicitação.
-
A soberania nacional exige cobrança drástica da conduta
inaceitável e invasora do governo norte-americano - afirma Ivan Valente. - As ruas devem execrar
e repudiar a atitude de “polícia de mundo” dos Estados Unidos.
Contatado pela agência internacional de notícias Associated Press, o porta-voz
da embaixada americana em Brasília, Dean
Chaves, limitou-se a dizer que o caso
seria comentado apenas pelo governo
em Washington. Repercutindo
a revelação de O GLOBO, a agência também entrou em contato
com o Ministério das Relações
Exteriores brasileiro, que por meio
de seu porta-voz, Tovar Nunes, disse que
se a espionagem for comprovada
“seria algo sumamente grave”, ao qual o governo brasileiro “responderia de acordo com a gravidade”.
Já o presidente nacional da OAB,
Marcus Vinicius Furtado, defendeu que a denúncia de espionagem deve ser levada à ONU. Ele comparou
a espionagem feita pelos Estados Unidos
com os “pesadelos” do Big
Brother no livro “1984”, de George Orwell, onde todos os
cidadãos eram vigiados o tempo todo.
-
A denúncia é séria e deve ser discutida no âmbito das Nações Unidas para apurar
responsabilidades. Revive o pior
dos pesadelos do “Big Brother“ de George Orwell, com ingredientes mais fortes, se considerarmos o desenvolvimento tecnológico de espionagem das nações mais poderosas.
Estamos todos, literalmente, vulneráveis, expostos, sem saber a quem recorrer e com uma sensação de impunidade insuportável - disse o presidente da OAB.
Ensaísta e jornalista americano presente na Flip, John Jeremiah Sullivan expressou
seu repúdio ante a denúncia.
-
É vergonhoso, nós americanos também fomos espionados. Como vamos viver numa
sociedade em que é possível fazer esse tipo
de espionagem? Onde praticamente é possível ler os pensamentos
das pessoas em bases de dados?
A partir do momento em que é possível
fazer isso, é lógico que algum
governo vai fazê-lo. Os americanos são os únicos
capazes de fazer isso? Ou são
os únicos estúpidos o suficiente para serem pegos?
Como
mostrou O GLOBO na edição deste
domingo, o Brasil, com extensas redes públicas e privadas digitalizadas, operadas por grandes companhias
de telecomunicações e de internet, aparece destacado em mapas da
agência americana como alvo prioritário
da espionagem no tráfego de telefonia e dados (origem e destino), ao lado de nações
como China, Rússia, Irã e Paquistão. É incerto o número de pessoas e empresas espionadas no Brasil, mas há evidências
de que o volume de dados capturados
pelo sistema de filtragem é constante e em grande escala.