Francisco Bosco
Recente massacre reacende a discussão sobre a necessidade de leis que dificultem o acesso a armas
Venho lendo textos nas imprensas americana e brasileira sobre o massacre na escola de Newtown, em Connecticut. Li repetidas vezes a frase: “A polícia ainda não sabe o motivo dos assassinatos”. Sobre o jovem Adam Lanza, autor do massacre, o depoimento de ex-colegas de escola insiste na sua intensa dificuldade de adaptação social. Segundo reportagem do “New York Times”, alguns suspeitam que Lanza sofria de um “transtorno de desenvolvimento”, a síndrome de Asperger, que é considerada uma forma de autismo. Esse mais recente massacre — já são ao menos 31 desde Columbine, em 1999 — reacendeu a discussão sobre a necessidade de leis que dificultem o acesso a armas, num país onde crianças conseguem encomendar armas de alto poder de destruição pela internet.
O massacre em escolas virou uma espécie de gênero nos EUA. Eles acontecem em diversos países, mas em muito maior intensidade na terra da NRA (National Rifle Association). Um gênero é uma forma cultural que canaliza o potencial de criação — ou destruição — dos sujeitos em uma cultura. Atualmente, um jovem pode se inspirar na cultura digital recreativa e postar um filme caseiro no YouTube; ou se inspirar na cultura mortífera dos massacres, encomendar suas armas (Lanza nem precisou, bastou pegar as de sua mãe, todas legais) e atuar.
É conhecida a propensão da vida americana a recalcar seus problemas sociais por meio da exteriorização do mal (essa propensão convive com a oposta, isto é, a de encarar esses problemas de frente, transformando-os em políticas de estado, como no caso do racismo). A exteriorização do mal produz catarses espetaculares no cinema, com a aniquilação de extraterrestres, soviéticos e, mais recentemente, terroristas islâmicos. O gênero do massacre nas escolas — que contém semelhanças com o terrorismo islâmico (o ato sacrificial dos executantes, por exemplo) —, para além da tragédia em si, traz essa dificuldade suplementar, que é a falta do inimigo externo.
Talvez isso explique essa frase absurda, segundo a qual a polícia ainda não sabe o motivo dos assassinatos. Ora, todos sabem o que é possível saber. Os massacres em escolas são um ato de pura negatividade, uma vingança de alguns sujeitos socialmente disfuncionais contra a sociedade que engendra suas disfunções. Diante da dificuldade de assumir isso — que a sociedade americana produz a mesma força que deseja assassiná-la — a doença assume o lugar da exteriorização do mal. Assim, o que é um social disorder se torna um developmental disorder; a responsabilidade coletiva é transformada em responsabilidade individual, mas mesmo o sujeito é de certo modo eximido moralmente de seu ato, pois também a doença, na terra da psicologia comportamental, é vista como exterioridade química (ou melhor: processos psíquicos — que envolvem agentes químicos, mas são irredutíveis a eles — são desvinculados de suas causas sociais e patologizados). “Autista”, portanto, e não uma espécie de resto que a sociedade produz, e que, enquanto resto, se revolta contra o todo.
O todo, por sua vez, ativa seus processos de defesa. Entre as opiniões que formam na imprensa o perfil do assassino estão aquelas que lembram que Lanza era filho de pais divorciados e que sua mãe o tirou da escola, deixando-o estudar sozinho, em casa. Assim, diante da diferença que ameaça a autoimagem satisfeita da normalidade, esta reage excluindo ainda mais a diferença: “atenção”, é o que ela diz, “todos os pais devem permanecer casados e os filhos adequados à sociabilidade normalizadora da escola”. Daí que tratar o (suposto) autismo como psicopatia não seja mera irresponsabilidade, e sim o sintoma de um totalitarismo da normalidade.
Mas o que esses atos trágicos da diferença reivindicam é uma outra forma de integração. Uma integração que seja capaz de abrigar a diferença sem querer coagi-la à normalidade. Não é por acaso que esses massacres tenham origem em bullyings; nem que em geral sejam cometidos por adolescentes ou jovens quase-adultos; muito menos que se realizem em escolas. A adolescência é o momento crítico da diferença, e a escola costuma ser o lugar onde a normalidade exerce sua maior pressão (se chegar lá, o sujeito adulto não terá mais esse tipo de convivência compulsória).
Michael Moore está certo em dizer que a causa de fundo desses massacres é a própria cultura americana, que é uma cultura das armas, da guerra e da violência (note-se que a arma usada pelo atirador, altamente letal, leva o nome do ex-presidente Bush: The Bushmaster). Mas a medida a ser tomada a curto prazo é uma legislação que dificulte drasticamente o acesso a armas. O presidente Obama deu a entender que agora engajará seus esforços nesse sentido.