Quando o Irã tem razão
Não é fácil confiar no regime iraniano, por ser uma ditadura
e, ainda por cima, teocrática. Para reforçar a desconfiança, basta dar uma
olhadinha no noticiário da Press TV, uma espécie de CNN iraniana.
Ontem, por exemplo, havia um artigo não assinado
que dizia que a expressão "comunidade internacional quer dizer promoção
do sionismo". Paranoia demais
para o meu gosto.
O
diabo é que, no caso das negociações entre a
"comunidade internacional"
e o Irã em torno do programa nuclear iraniano, são os
iranianos que têm razão.
Rejeitaram, no fim de semana, um acordo que parecia iminente
porque se recusaram a aceitar o total desmantelamento
de seu programa nuclear (exigência, esta verdadeira, de Israel).
Vamos combinar que o Irã tem tanto
direito a enriquecer urânio, para finalidades
civis, como a "comunidade internacional"
tem todo o direito de desconfiar que o objetivo final dos iranianos é a bomba.
Só parece haver uma fórmula
para conciliar ambas as desconfianças: supervisão internacional para certificar que o programa é de fato para finalidades
civis.
O
Irã até deu
um passo importante nessa direção, ao assinar ontem
com a Agência Internacional
de Energia Atômica um acordo para inspeção
de suas instalações nucleares. Incluiu no pacote o reator de água pesada de Arak, que permite
usar o plutônio para chegar à bomba,
passando ao largo das restrições ao enriquecimento
de urânio que obrigatoriamente terá que constar do acordo com a tal comunidade internacional (na verdade, EUA,
Alemanha, Reino Unido, França, China e Rússia, o P5+1 do jargão diplomático-jornalístico.
A
França, por exemplo, recusou o acordo que estava
sendo costurado no sábado exatamente pela omissão em
relação a Arak.
Mesmo que se queira continuar achando que o regime iraniano mente as 24 horas do dia e está negociando um acordo apenas para
se livrar das sanções que machucam sua
economia (e seus cidadãos), ainda assim um acordo imperfeito é melhor do que nada, nas circunstâncias.
Foi o que deixou claro o secretário de Estado norte-americano,
John Kerry, ao afirmar no sábado que, "enquanto um acordo não é fechado, o Irã continuará a enriquecer urânio e a instalar novas centrífugas [para o enriquecimento]".
Fica claro, pois, que, se um acordo pode não
impedir o Irã de perseguir a bomba, sem ele é certo
que a busca continuará diuturnamente.
É
mais lógico dar uma chance ao acordo, mesmo
que não seja
o ideal, do que continuar a
colocar o Irã contra a parede, por meio
de sanções e a ameaça de um
ataque militar. Até porque nem
sanções nem ameaças impediram, até agora, que o programa nuclear avançasse.
E
ainda pode haver um bônus em um acordo, a julgar pelo que
diz o ministro iraniano do Exterior, Javad Zarif, ao sítio
Al-Monitor: "Se resolvermos a questão nuclear, se pavimentaria
o caminho para a resolução de outros assuntos".
É
razoável supor que ele se refere
ao conflito na Síria, uma
catástrofe humanitária sem precedentes.
Clóvis Rossi é repórter
especial e membro do Conselho
Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors
Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. É autor de obras como "Enviado Especial: 25 Anos ao Redor
do Mundo" e "O Que
é Jornalismo". Escreve
às terças, quintas e domingos na versão impressa
de "Mundo" e às sextas no site.
crossi@uol.com.br