Editorial: O rei está nu, diz Dilma

 

"Se o Brasil não espiona os EUA --o país mais poderoso do mundo--, as agências de inteligência brasileira são incompetentes."

 

A frase é de John Allen Gay, um dos editores da revista americana de relações internacionais "The National Interest", e foi publicada ontem em seu microblog na internet durante conversa pouco amistosa com o jornalista Glenn Greenwald, autor de reportagens sobre o sistema de espionagem dos EUA.

 

Com franqueza e a simplicidade de 140 caracteres, Gay resumiu o problema subjacente às denúncias contra a NSA (Agência de Segurança Nacional): na medida da capacidade técnica, todos os países tendem a se valer da espionagem para proteger seus interesses.

 

Daí não decorre, porém, que os EUA não possam ou não devam ser criticados por procedimentos ora tornados públicos. Muito menos que possam ou devam desenvolver ferramentas para investigar virtualmente todo e qualquer cidadão ao redor do globo.

 

É difícil traçar uma linha clara no campo do pragmatismo internacional, mas é fácil perceber que os Estados Unidos ultrapassaram qualquer fronteira razoável.

 

A presidente Dilma Rousseff acertou, portanto, ao usar boa parte de seu discurso na 68ª Assembleia-Geral da ONU, em Nova York, para criticar os EUA pelo monitoramento de ligações telefônicas e e-mails de brasileiros, incluindo comunicações da Petrobras e da própria Presidência da República.

 

Descritas pela imprensa internacional como "contundentes", "virulentas", "fortes" ou "ásperas", as palavras de Dilma não trouxeram, a rigor, mudanças em relação ao que ela própria havia dito ou feito, como suspender a visita de Estado aos EUA, que ocorreria em outubro. Ganharam evidente peso, no entanto, por terem sido pronunciadas na sede da ONU.

 

Para além da retórica indignada, Dilma afirmou que defenderá propostas para um marco civil multilateral sobre o uso da internet. A ideia, segundo a presidente, é criar regras para "evitar que o espaço cibernético seja instrumentalizado como arma de guerra".

 

Não dúvidas de que, em tese, seria bem-vinda uma regulação desse tipo. É pouco provável, contudo, que o objetivo seja alcançável --basta ressaltar que conflitos de interesses têm impedido que o próprio Brasil aprove legislação semelhante no ambiente doméstico.

 

Como se não presidisse o país acusado de violar direitos humanos e liberdades civis, Barack Obama discursou logo depois de Dilma, conforme o protocolo. Em resposta indireta, disse apenas ser preciso equilibrar as preocupações de segurança com as de privacidade. Preferiu tratar de outros temas, sobretudo do Oriente Médio.

 

Obama sem dúvida sabe que Dilma tem razão. Mas, como na fábula "A roupa nova do rei", de Hans Christian Andersen, o mais provável é que ele continue impassível.