Dois setembros
Roberto
Abdenur*
O Século
20 até que terminou bem, com o fim da Guerra Fria ao início de sua
última década. Mas até então
fora século de terror. O das duas guerras
mundiais, e o do "equilíbrio
do terror" ao largo das
mais de quatro décadas em que
se confrontaram EUA e URSS, armados até
os dentes com milhares de armas nucleares.
Passamos, no começo do século 21, do terror ao terrorismo. Não o terrorismo clássico de outrora, como
o de palestinos contra israelenses,
o do IRA na Irlanda ou o dos independentistas bascos na Espanha.
Com a
Al Qaeda, o terrorismo deixa
de ser nacionalista, territorial, laico.
Torna-se algo disperso, difuso, intangível, potencialmente onipresente.
E motivado por
utopia regressiva derivada
de interpretação extremada
de religião de outro modo digna de respeito
e admiração.
O 11 de Setembro foi a primeira catástrofe dotada de impacto universal instantâneo, vivenciada em tempo real por bilhões de pessoas. Fato curioso:
esse golpe, embora configure momento de vulnerabilidade para os EUA, veio,
muito mais do que o triunfo na Guerra Fria, exacerbar sentimentos de superioridade e excepcionalidade arraigados na mentalidade
norte-americana.
A doutrina
Bush, resumida na "guerra ao terrorismo",
manifestou-se sob a forma de patriotismo
militarizado, calcado nas ideias neoconservadoras
do direito de agir de forma
agressiva e unilateral, à revelia
do direito internacional ou da ONU. Seguiram-se as malfadadas
intervenções no Iraque e Afeganistão. Foi assim duramente abalada -pelo menos
temporariamente- a ordem internacional. Triste, aquele primeiro setembro do século.
Passados poucos anos,
a década se fecha com um
novo e, à sua maneira, não menos tenebroso
setembro: o da crise financeira de 2008. De novo, inesperada instância de vulnerabilidade dos EUA (embora não inédita,
após o crash dos anos 30).
Mas este
segundo setembro, quase tão instantâneo
quanto o primeiro, traz consequências ainda mais graves e duradouras.
Não há Bin Laden a eliminar, não
há tiros que resolvam. Se ao impacto dos eventos de 2001 foi danificada a ordem
política internacional,
agora o que ocorre é a inversão mesma da velha ordem econômica.
As potências estabelecidas vergam ao peso de suas dívidas e descontrole, enquanto se mostram menos vulneráveis
os emergentes. Mas a crise é global e seus
desdobramentos ainda se manifestarão por largo tempo.
Se o terrorismo
levou os EUA à extroversão agressiva, a crise econômica os leva
a exercício de introversão. Se o terrorismo
uniu a nação, a crise de 2008 racha e polariza a sociedade e o meio político. Se 2001 levou ao
unilateralismo, 2008 abre
novas possibilidades ao diálogo, à concertação e ao multilateralismo.
Surge o G20. Revitalizam-se os organismos financeiros como FMI
e Banco Mundial. A Organização
Mundial de Comércio, malgrado
o fracasso da Rodada Doha,
se reforça como
fonte de quadros normativos e foro capaz de dirimir disputas e controvérsias. Menos mal.
Mas, sim, subsiste
um desafio: a superação, nos EUA, do Tea Party, praticante do que, descontado certo exagero, se afigura um verdadeiro terrorismo econômico. A Al Qaeda da economia...
*Roberto Abdenur foi ex-embaixador do Brasil em Washington no primeiro mandato de Lula (2003 a 2006). Foi também
foi ministro das Relações Exteriores
entre 1993 e 1995.