Imperialistas e humanitários
João Pereira Coutinho
21/03/2011
A vida é muito irônica. A política
também. Anos atrás, quando Nova York viveu o seu 11 de Setembro e George W. Bush marchou
para o Afeganistão e para o Iraque, todo mundo gritou
as palavras de ordem: imperialismo, imperialismo, imperialismo.
Barack
Obama faz toda diferença. Com ele, não há "agressões imperialistas". Só "intervenções
humanitárias". Seguindo esse
raciocínio, Gaddafi é um torcionário;
Saddam Hussein era um benemérito, apesar
do hábito desagradável em gasear curdos
e xiitas.
Eis a interpretação
"liberal" do momento, que
Dan Serwer resume na revista "The Atlantic". A
Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) participa na guerra
civil líbia, apoiando aberta e objetivamente os "rebeldes" contra
Gaddafi? Faz bem. Legal e moralmente bem.
Legalmente, existe uma
resolução aprovada no Conselho de Segurança das Nações Unidas,
o que não sucedeu na
aventura iraquiana do
cowboy Bush. O Conselho de Segurança
é hoje uma espécie de Olimpo secular, onde os deuses
se reúnem para decidir o futuro dos terráqueos.
E, moralmente,
estamos conversados:
Gaddafi não pode ficar à solta para
assassinar a sua própria população. Lembremos Srebrenica, avisa Dan Serwer, quando a "comunidade internacional" fechou os olhos
e deixou que as tropas sérvias avançassem sobre milhares de muçulmanos bósnios. Compaixão é precisa.
Compaixão e, já agora, coerência: se o critério
principal para a intervenção
na Líbia
se resume ao argumento humanitário, não há nenhum motivo
para que o Olimpo se fique pela Líbia.
No mundo
árabe, há trabalho a fazer no Bahrain e no Iêmen, que nos
últimos tempos foram tratando da "oposição" interna com intolerável dureza. Ainda na
região, é necessário
remover os governos opressores da Arábia Saudita, do Qatar, de Omã, da Jordânia, da Síria ou do Irã.
E, para
ficarmos apenas em África, é necessário
começar a descer o continente para sul e tratar das
ditaduras desumanas da Mauritânia, do Chad, do Sudão, da
Eritreia, da Etiópia, da
Costa do Marfim, dos Camarões,
da Somália, do Gabão, do Ruanda, do Zimbabwe ou da Suazilândia.
Ponto de ordem: Gaddafi é um reputado criminoso, e o seu nome ficará
inscrito nas páginas mais negras
do terrorismo internacional.
Mas Gaddafi não é pior do que dezenas
de outros ditadores e torcionários que compõem a paisagem. Com a exceção, claro,
de ter abandonado nos últimos anos
o seu programa nuclear.
O que
exige uma segunda observação: a primeira década do século 21 ficou marcada pelo esforço
do Ocidente em combater o terrorismo fundamentalista.
É por
isso que seria, no mínimo, desastroso que a intervenção na
Líbia, disposta a remover
um ditador como Gaddaffi, acabasse por abrir caminho
para o triunfo da oposição islamita. A mesma que, sabemos hoje, tem fornecido jihadistas ativos no Afeganistão e no Iraque contra tropas ocidentais.
A imposição
de uma zona de exclusão aérea na Líbia
não é uma mera medida preventiva.
É um declaração de guerra
com tudo que isso implica: a possibilidade de derrubar Gaddafi
para que os islamitas cheguem
ao poder; a possibilidade de Gaddafi sobreviver
aos ataques, retaliando contra civis na Europa;
a possibilidade da Líbia se
transformar numa guerra longa e sangrenta, para onde o Ocidente será sugado novamente.