A anomalia Obama
Clóvis Rossi
04/11/2010
Ainda encharcado de férias, as duas primeiras reações aos resultados eleitorais nos Estados Unidos foram com o fígado. Ei-las:
1 - Esse
povo não sabe votar (o povo
dos Estados Unidos, que fique claro).
2 - Xi, ganharam
os correspondentes norte-americanos dos hidrófobos brasileiros que tanto emporcalharam a campanha eleitoral, destilando ódios e asneiras.
Depois, já curado
do porre de ócio, Ed
Pilkington, do "Guardian", me faz vestir a carapuça que jogou na
sua coluna na capa da edição
desta quinta-feira: "O
movimento 'Tea Party', que
21 meses atrás não existia, e que tem sido amplamente
ridicularizado por aqueles que pensam
que sabem mais, não pode
mais ser ignorado".
Bingo. Não
é que o movimento ultraconservador tenha sido o vencedor da eleição. A história é um pouco mais complicada.
Mas foi o "Tea
Party" quem impôs a agenda eleitoral, puxou o Partido Republicano ainda mais para a direita
e, portanto, deu uma ajuda bárbara
(no duplo sentido da palavra) para a derrota do presidente Barack
Obama.
Os que
achamos que "sabemos mais" e ridicularizamos o "Tea Party" não
nos demos conta de que, na verdade,
a agenda norte-americana ou,
ao menos, de metade da América, é a agenda do
"Tea Party", não o contrário.
Ou, como preferiu
Eduardo Lago, escritor e diretor do Instituto Cervantes em Nova York, em artigo para "El País",
"o Tea Party é a cristalização do medo entranhado que meia América
tem de que as coisas deixem de ser como vinham sendo desde
sempre".
O americano
médio é tão conservador que a esquerda nos Estados
Unidos não é chamada de esquerda, mas de "liberal", o que
carrega consigo a rejeição, por definição,
do intervencionismo estatal,
justamente a marca mais saliente da esquerda no resto do mundo.
Que tenha havido
um voto contra o intervencionismo
adotado por Obama tem lógica, portanto, mas tem também uma baita crueldade:
grande parte do intervencionismo
do presidente foi crucialmente necessário para conter a crise
provocada, em grande parte, pelo excesso de "desintervencionismo"
de seu antecessor republicano,
George Walker Bush.
A volta
do pêndulo para o lado conservador já deu, nesta
quinta-feira mesmo, o primeiro sinal: Spencer Bachus, o republicano que, em tese,
presidirá o comitê de Serviços Financeiros da Câmara de Representantes, mandou carta ao
"Financial Times", avisando que certo tipo
de regulação do setor financeiro, incluído no pacote Obama, causará tremendos prejuízos aos bancos norte-americanos.
Já John Boehner, que será o novo presidente da Câmara, com a maioria republicana, classificou de
"monstruosidade" a reforma
da saúde que foi a maior vitória
de Obama nesses dois anos
de governo, ainda que ela tenha
sido aguada pela oposição não
só dos republicanos mas de muitos democratas.
Posto de outra forma: as duas "intervenções" do presidente que mais faziam sentido
começam a ser dinamitadas. Ou, olhando as coisas pelo avesso:
a anomalia eleitoral não foi
a vitória dos republicanos em 2010, mas a de Obama em 2008.