Moral da história
13/10/2010
Leia este
relato de experimentos realizados na década
de 1940 por "cientistas"
de uma nação "civilizada" noutro país sob sua influência:
Os experimentos
iniciais com sífilis do estudo empregaram trabalhadoras do sexo intencionalmente infectadas com Treponema pallidum como fonte de infecção
para presidiários do sexo masculino. Naquele tempo, trabalhadoras do sexo eram admitidas
nas prisões. Quando as taxas de transmissão fêmea-macho se mostraram baixas, a abordagem de pesquisa
mudou para a inoculação direta de presidiários e pacientes no
hospital psiquiátrico. A maioria dos experimentos envolveu injeção subcutânea de T. Pallidum ou exposição do prepúcio peniano a material infeccioso. A maioria
dos sujeitos de pesquisa foi tratada com penicilina, embora os registros disponíveis
do estudo não documentem terapia ou finalização da terapia para todos
os participantes; alguns receberam só tratamento parcial.
Um sujeito
de investigação, paciente
com histórico grave de epilepsia,
morreu de "status epilepticus"
por ocasião do tratamento com penicilina. Embora mortes adicionais
tenham ocorrido durante a condução
do estudo no hospital psiquiátrico,
foram muito provavelmente relacionadas com altas taxas de doenças anteriores, como tuberculose. Os pesquisadores forneceram alguns itens de apoio institucional, como medicamentos
anticonvulsivantes e refrigeradores
para estocar vacinas, e ofereceram cigarros como incentivo
para os sujeitos
de pesquisa. Os arquivos
não fornecem indicação de que os indivíduos tenham
entendido que participavam de pesquisas.
A maior parte dos experimentos com gonorreia e cancro foram conduzidos com soldados. Enquanto os estudos
iniciais envolviam contato sexual dos soldados com trabalhadoras do sexo que haviam sido
infectadas com gonorreia, participantes subsequentes foram infectados por meio de inoculações
intrauretrais de Neisseria gonorrheae e inoculações cutâneas de Haemophilus ducreyi, e depois tratados com penicilina e sulfa, respectivamente.
Violações da ética nesse estudo incluem
as seguintes: (1) os participantes eram membros de populações vulneráveis, inclusive pessoas
com doença mental e institucionalizadas,
presidiários e soldados (que não poderiam
dar consentimento informado válido); (2) indivíduos foram intencionalmente infectados com patógenos que podiam
causar graves enfermidades;
e (3) usou-se de mentira na condução
de experimentos. A correspondência
entre pesquisadores e seus superiores também reconhece a natureza não ética do trabalho.
Uma carta escrita em 1948 assinala: "Estou um pouco, na
verdade mais que um pouco, inquieto
com o experimento com as pessoas
insanas. Elas não podem dar seu consentimento,
não sabem o que está acontecendo,
e, se alguma organização boazinha farejar o trabalho, levantará um bocado de poeira". O estudo nunca foi
publicado.
O primeiro
impulso de muita gente seria concluir
que se trata de experimentos realizados por nazistas na Polônia, mas não foi
o caso. O autor da carta mencionada ao final é R.C. Arnold,
supervisor do médico e pesquisador
John Cutler, que conduziu os experimentos na Guatemala entre 1946 e 1948. Depois, portanto, do final da Segunda Guerra Mundial e da exposição
dos horrores dos campos de concentração alemães e da obra de carniceiros como Josef Mengele. Arnold e Cutler trabalhavam para o Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos.
Os documentos
sobre essas pesquisas bárbaras foram descobertos por Susan Reverby, do Wellesley
College dos EUA. Ela buscava documentos de outro experimento desumano com sífilis, este em
solo norte-americano (Tuskegee), mas
deu com a carta de Arnold e
outros papéis acabrunhantes sobre o caso guatemalteco. A descoberta de Reverby está disponível na rede, e o relato
acima foi traduzido do artigo de reconhecimento - quase um pedido de desculpas - escrito por Thomas R. Frieden e Francis S. Collins, diretores
respectivamente dos Centros
para Controle e Prevenção de Doenças (CDC) e dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH), ambos dos EUA. O comentário foi publicado no periódico da Associação Médica Americana ("Jama").
Não escrevo sobre
isso para demonizar os americanos,
embora sempre seja útil relativizar
a admiração pelos altos padrões vigentes nos órgãos
de pesquisa biomédica dos EUA. Faço-o para
pôr o dedo numa ferida mais
dolorida, que parece cicatrizada, mas oculta
um abscesso intocado: a historicidade do mal, ou o fato incômodo de que os padrões
morais e éticos variam com o tempo.
Afinal, em que
pese o desconforto do missivista, não seriam poucas as pessoas daquela década que talvez
considerassem legítimas as pesquisas deletérias com pessoas "objetivamente"
inferiores como aquelas - prostitutas, loucos e bandidos, ainda por cima
de uma República das
Bananas.
Parece inconcebível, hoje. Mas não
me canso de lembrar que minha avó
paterna, dona
Sinhá, nascida em 1885, chegou a ter mucama negra,
não sei se escrava. Os efeitos
da escravidão no Brasil não são tão
remotos quanto querem fazer crer
ideólogos da inexistência
de racismo entre nós.
Em meados do século 20, a eugenia
ainda era doutrina corrente na medicina,
e não só nos EUA, na
Alemanha, ou no Brasil.
Felizmente, evoluímos. A exposição
de horrores como os dos campos de concentração, ou os do Gulag soviético, ou os do Cambodja
de Pol Pot, ou a simples visão dos instrumentos de punição de negros fugidos no Brasil (para não falar
da matança de índios no Oeste paulista em pleno século
20), conduzem quase inevitavelmente a uma ampliação do círculo da moralidade. Seres antes dados como inferiores
adquirem dignidade e direitos - negros, mulheres, assassinos, fetos, índios, estrangeiros, crianças, adúlteros, quem sabe até animais.
A lição que poucos
extraem dessa história é que não existe um ótimo
predeterminado em matéria de moralidade. Tendemos a considerar nossas próprias convicções como as mais
universais e válidas, mas elas também
terminarão por alterar-se. Basta dar tempo ao tempo.
Se a
Igreja Católica mudou como mudou,
e até os mitos de populações indígenas se alteram para incorporar experiências históricas (como o contato com os europeus), por
que seriam imutáveis as noções atuais de direitos humanos?
Em
lugar de "mutáveis",
porém, deveria dizer "expansíveis". Não tem cabimento
mudar os conceitos de dignidade e direitos para deles excluir seres, ou aceitar que
eles, além de históricos, sejam
culturalmente dependentes.
A matança
de judeus e ciganos na Segunda
Guerra é odiosa agora como
no passado - na Alemanha, no Irã ou na França.
A vingança travestida de punição pela pena de morte será um dia universalmente
reconhecida como repulsiva _nos Estados Unidos, no Irã, em Israel ou na China.
Por ora, temos
de nos contentar com o fato de que experimentos
como os
de Tuskegee, Guatemala ou Auschwitz já são vistos
como obviamente criminosos e infames. É mais um passo
- e está longe de ser o último.
Marcelo Leite é repórter especial da
Folha, autor dos livros
"Folha Explica Darwin" (Publifolha)
e "Ciência - Use com Cuidado"
(Unicamp) e responsável pelo blog Ciência em Dia (Ciência
em dia). Escreve às quartas-feiras
neste espaço.