Terras do Nunca
29/06/2009
de Lisboa
Pobre Michael Jackson. O homem morre como
todos morremos. Radicalmente só. Com o coração a despedir-se prosaicamente do corpo. O mundo, em choro e transe,
não acredita. Um mito
não morre assim. Porque assim
morremos nós, anônimos e mortais, mergulhados na
nossa própria miséria. Os mitos
só morrem por acidente ou
conspiração invejosa de terceiros, que não aguentam o brilho incandescente da estrela.
John Kennedy não
foi abatido pelo fracassado Lee Oswald numa manhã funesta
de Dallas. Kennedy foi assassinado pela CIA, pelos cubanos, pelos soviéticos, pela máfia, eventualmente pelos extraterrestres.
O mesmo para
a "Princesa do Povo",
Diana Spencer. Uma vítima de um motorista
alcoolizado e irresponsável
numa noite de Paris?
Não, mil vezes não. Diana foi vítima da
Família Real inglesa, que a desprezava para lá do tolerável.
Para dar mais requinte ao episódio,
há quem garanta
que Diana estava grávida. A autópsia não confirmou.
Mas quem
se prende a pormenores? Eu, por mim, aposto
que eram gêmeos.
E, agora, Michael Jackson: ele não morreu por
excessos vários e loucuras evidentes. Foi o médico; foi
a empregada; foi o Rato Mickey quem acabou com o cantor.
Deixemos as teorias da conspiração para as mentes conspiratórias. No meio do sentimentalismo vulgar, e
quase religioso, com que o planeta chora
a morte de Jackson, a única declaração vagamente sensata foi dita pelo
próprio presidente americano. E que
nos disse Obama?
Para começar, que Jackson foi um músico de talento. Difícil discordar, embora o Jackson que eu aprecio
morreu no dia em que nasceu
o Jackson que grande parte
do mundo aprecia, ou seja, em
1979 com "Off the Wall". O single prodigioso
que os Jackson Five editaram dez anos
antes, "I Want You Back", é incomparável
com qualquer obra
posterior. Opinião pessoal. Do Michael Jackson a
solo, admiro apenas o bailarino. Brinco? Não brinco. Fred Astaire também não brincava
quando dizia, na década
de 80, que Jackson
nascera demasiado tarde. Tivesse ele vivido nos anos 30 ou
40 e teria feito as delícias de Busby Berkeley ou
Vincent Minelli. Quem
aprecia musicais sabe do que falo.
Mas Obama não elogiou
apenas o talento. Obama foi corajoso
e lamentou a figura profundamente trágica de Michael
Jackson. Nos próximos
anos, saberemos mais sobre essa
tragédia. Mas aposto que a origem
dela está num homem que, para
usar as palavras
de um francês célebre, alimentou uma "náusea-de-si-próprio" ao longo da vida:
uma náusea da sua própria
negritude e, talvez mais importante, uma náusea da sua
própria humanidade, por definição mutável
e perecível. Não admira que, ano
após ano, ele tenha tentado
golpear essa humanidade, perseguindo um ideal estético que era, aos olhos do mundo,
caricatural e infantil. E, aos olhos dele, eterno e pós-humano.
Disse anteriormente,
citando Fred Astaire, que
Michael Jackson não viveu nas décadas de 30 e 40 para inscrever o seu nome na
tradição dos grandes musicais. Mas é possível recuar mais um pouco e lamentar que Jackson não tenha nascido e vivido em finais
do século 19, inícios do
20. E que não tenha conhecido uma alma gêmea
como
J.M. Barrie,
o escritor para quem a infância era, simultaneamente, o melhor e o pior dos mundos. O melhor, pelo encantamento
permanente que lemos em "Peter Pan" ou no injustamente esquecido "The Little White Bird". Mas também
o pior dos mundos, porque capaz de antecipar a corrupção futura: a maturidade, o envelhecimento, a perda da inocência.
Não sei se Jackson leu Barrie. Provavelmente.
Mas sei
que lhe roubou
o nome para o seu rancho, "Neverland",
essa "Terra do Nunca"
onde os rapazes
não crescem. Tivesse Michael Jackson lido "Peter Pan" com atenção e saberia que, mesmo na "Terra do Nunca",
os rapazes não crescem mas
também morrem.