Missão impossível em Moscou
18
de setembro de 2013 | 2h 14
Paulo
Sotero*
Se
tiver êxito, a iniciativa da Comissão
de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados
de enviar uma delegação à Rússia para ouvir Edward Snowden sobre as atividades de espionagem da National Security
Agency (NSA) no Brasil, aprovada por unanimidade
na semana passada, colocará o Legislativo brasileiro no centro de um pesadíssimo jogo nas relações
internacionais. Ter os representantes do povo diretamente envolvidos nesse jogo é inevitável e até desejável, na medida em
que o País avançar na realização de sua secular ambição de ocupar o espaço que lhe cabe
entre os grandes. A recente participação de parlamentares em questões complicadas com a Bolívia aponta nessa direção. No caso em questão,
porém, aconselha-se aos congressistas entrar em campo com os olhos bem
abertos e sem ilusões.
Devem presumir, em primeiro lugar,
que seu desejo
de avistar-se com Snowden é bem
visto pelos serviços de inteligência dos EUA, pois, se atendido,
dará a eles uma oportunidade única para tentar
saber o paradeiro do jovem
ex-empregado da Booz Allen
e armar uma operação para trazê-lo
de volta aos EUA. Com isso em
mente, os parlamentares não devem descartar a possibilidade de se tornarem atores involuntários de cenas dignas dos thrillers de espionagem - antes, durante e depois do encontro na Rússia. Os membros
da comitiva parlamentar precisam ser realistas, também, quanto aos entendimentos
que terão de entabular com os diplomatas de Moscou para agendar o encontro com Snowden.
Os
russos, como se sabe, estão habituados
a espionar e ser espionados.
Devem, por isso, estar curiosos
com a perplexidade dos parlamentares
ante a bisbilhotagem da NSA no Brasil. País com tradição de grampo e vazamento seletivo de informações sigilosas de seus próprios cidadãos,
o Brasil é a única nação de seu tamanho
e status que não dispõe de um serviço sofisticado de contraespionagem ou de coleta e interpretação de informações sigilosas fora de suas fronteiras. A atitude nacional no assunto é tão relaxada
que, como admitiu o próprio ministro das Comunicações, Paulo
Bernardo, informações sigilosas
são trocadas entre funcionários do governo não em redes
intranet seguras, mas via
Gmail e outros provedores
de internet vulneráveis não
só aos serviços
de espionagem de países que levam o assunto
a sério, mas a qualquer hacker de fundo de
quintal.
É
também estranha para os russos
a controvérsia que as atividades da NSA
expostas por Snowden causa nos próprios
EUA, incluindo as revelações de que a agência espiona líderes e empresas de países amigos como Alemanha, França, México e Brasil sob a justificativa, obviamente fajuta no caso, de proteger o país contra o terrorismo. A imprensa americana tem publicado reportagens e análises copiosas sobre atividades de espionagem da NSA
nos EUA, destacando os atentados
ao direito dos cidadãos à privacidade e violações de leis adotadas após o 11 de Setembro para compatibilizar as ações do crescente aparato de segurança do país ante a ameaça terrorista com o preceito da liberdade individual assegurado pela Constituição. Na Rússia de Putin espiona-se à grande, sem maiores preocupações
com tais sutilezas.
Outra peculiaridade
russa é o pragmatismo.
Snowden deve ter ficado apreensivo com a desenvoltura exibida nos últimos dias
por Vladimir Putin quando surgiu a oportunidade de tirar proveito da enrascada em
que o presidente Barack
Obama se meteu no encaminhamento
da questão síria. Putin ofereceu uma saída ao
colega e depois zombou do "excepcionalismo americano" em artigo publicado no New York
Times. Snowden, que recebeu
asilo político na Rússia pelo
prazo de um ano, deve saber que é forte candidato a virar moeda de troca entre Washington e
Moscou.
Os
russos não deixarão passar a oportunidade da visita dos parlamentares brasileiros em missão tão sensível
para gravar tudo, atentos à possibilidade de a CIA usar a ocasião para penetrar
seus serviços de contraespionagem. Detalhes cinematográficos à parte, há o desafio de interpretar os sinais emitidos
pelos russos.
O
Brasil não tem tradição nessa arte e já pagou caro
por isso. Em 2010, com uma carta de incentivo de Obama na mão, o presidente
Luiz Inácio Lula da Silva embarcou na bem-intencionada tentativa de mediar, juntamente com a Turquia, um acordo nuclear entre a comunidade
internacional e o Irã. O então ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, preparou
a negociação convencido de que, embora de difícil execução, ela seria bem-sucedida,
não só por
ter mérito, mas porque Rússia
e China já haviam indicado que não
apoiariam a adoção de novas
sanções econômicas contra Teerã no Conselho de Segurança (CS) da ONU. Os vetos russo
e chinês eram a garantia de que o caminho da negociação
era o único disponível.
Mas o atual ministro da Defesa
estava equivocado. Não percebeu que,
entre a resistência à imposição
de novas sanções ao Irã e seu interesse
em preservar as relações com os EUA e sua influência
sobre o tema da não proliferação
como membros permanentes do CS, Rússia e China
optariam por este último e endossariam
novas sanções propostas por Washington. Foi o que ocorreu. O veterano chanceler russo, Sergey Lavrov, há oito anos
no posto, que visitava Washington enquanto Lula
estava em Teerã, exibiu publicamente
sua exasperação ante a petulância brasileira de se meter
em assunto de gente grande antes de se reunir com a então secretária de Estado, Hillary Clinton, e Obama, que já haviam
recebido o apoio de Pequim às sanções.
Os
integrantes da Comissão de Relações Exteriores da Câmara
que viajarem para Moscou devem
ter presente que Sergey Lavrov é o
interlocutor do secretário de Estado John Kerry no atual caso das armas químicas da Síria, que
é o Irã da vez. Devem saber, também, que sua
imunidade parlamentar não valerá um grama
de caviar no momento em que desembarcarem em Moscou e mergulharem
no eletrizante submundo da espionagem internacional.
*Paulo
Sotero é jornalista e diretor do Brazil Institute do Woodrow Wilson Internacional Center for Scholars, em
Washington.