A visita de Kerry
15
de agosto de 2013
O
Estado de S.Paulo
Seria da ordem natural das coisas se fossem apenas jogo
de cena as duras palavras que o secretário de Estado americano,
John Kerry, ouviu publicamente
em Brasília do seu colega Antonio Patriota sobre a parte que recaiu sobre o País da megaoperação de espionagem eletrônica global conduzida pela Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (NSA, na
sigla em inglês) e denunciada em maio último
pelo ex-analista de inteligência Edward Snowden. No entanto,
a indignação do governo brasileiro soa genuína. Não que
o Itamaraty e o Planalto, para não mencionar
os órgãos federais de informação, sejam ingênuos a ponto de imaginar que algum país
do mundo, em condições de bisbilhotar os demais, deixaria
de fazê-lo quando se tratasse de amigos, em obediência ao princípio
cunhado pelo legendário secretário de Guerra
dos EUA, Henry Stimson (1867-1950). "Cavalheiros", dizia ele, "não leem a correspondência de outros cavalheiros."
Mas o que levou o chanceler Patriota, em entrevista
ao lado de Kerry, a ir além de qualquer
outro protesto estrangeiro audível contra a
amplitude das ações da NSA foi, paradoxalmente,
o prolongado período de harmonia e cooperação entre as duas nações, não
obstante eventuais divergências,
com as quais convivem perfeitamente bem, como diante dos problemas do Irã, Síria e Venezuela, por exemplo. Kerry, aliás, veio preparar a primeira visita de Estado da presidente Dilma
Rousseff aos EUA, prevista para
outubro, com tudo de positivo que isso
costuma proporcionar na esfera diplomática.
Patriota falou do risco de que uma
"sombra de desconfiança"
se projete sobre as relações bilaterais, caso o contencioso da interceptação de comunicações eletrônicas e telefônicas de brasileiros não seja tratado
de "modo satisfatório".
Por sua vez,
na reunião de uma hora com o enviado americano, Dilma cobrou proteção
para o conteúdo dos grampos envolvendo brasileiros.
O
Brasil não desdenha dos imperativos de segurança em nome
dos quais, depois do ultraje do 11 de Setembro,
Washington adotou políticas
que chegam a violar os tratados
internacionais de que é signatário e a desrespeitar os direitos individuais
consagrados na sua Constituição. O fato de o Capitólio chancelar essas políticas - como Kerry ressaltou em Brasília - não as torna, porém,
mais legítimas. A
"terra dos livres" não
deixou de ser uma democracia, mas é uma democracia vigiada. A perda relativa da privacidade
de inumeráveis pessoas, alega a Casa Branca desde os tempos de Bush, teria permitido cortar pela raiz
diversos outros atos de terror em solo americano e no exterior, garantindo
também, segundo Kerry, a incolumidade de brasileiros. Isso é obviamente impossível conferir. Mas é conhecida a lei de bronze segundo a qual quanto maior, mais
difusa e mais premente a "necessidade de
saber" que os governos invocam para salvaguardar a segurança nacional, tanto maior o perigo
de perversão dos instrumentos
reunidos para esse fim.
Referindo-se certa vez ao infame
Serviço Nacional de Informações (SNI) da ditadura de 1964, o general Golbery do Couto e Silva confessou
ter criado "um monstro". Que se dirá, então, do monumental aparato americano de espionagem, com os seus extravagantes recursos não contabilizados
e as decisões de seus generais protegidas do escrutínio público? Marx vivia repetindo o dito do poeta e dramaturgo romano Públio Terêncio (185 B.C.-159 B.C.):
"Nada do que é humano
me é estranho". Quando
um órgão do mais poderoso Estado do mundo age como se essa também
fosse a sua insígnia, não há limites
para o que é capaz de perpetrar. A eficiência de uma NSA pode variar
na razão inversa de seu porte - segundo especialistas, os EUA perdem para
Cuba na matéria. O que varia na
razão direta é a sua expansão e os interesses de toda ordem que
agrega, para muito além dos objetivos que lhe
deram origem - e de qualquer consideração com o pudor.
Talvez para aplacar as sensibilidades brasileiras, Kerry teria admitido em conversa
reservada com Patriota, segundo o Valor, que Washington deveria ter dado ciência prévia de suas interceptações aos países amigos. Mas, como disse
o chanceler, "ouvir esclarecimentos não significa aceitar o status
quo".