Lembrando os anos 1930
01 de janeiro
de 2012 | 3h 06
LUIZ SÉRGIO HENRIQUES, TRADUTOR, ENSAÍSTA, É UM , DOS ORGANIZADORES DAS OBRAS DE GRAMSCI NO BRASIL, SITE:
WWW.GRAMSCI.ORG - O Estado de S.Paulo
No fim
de um ano dramático, que fez desfilar diante de nós os
penosos desdobramentos da crise iniciada com as hipotecas podres americanas e, agora, atinge em cheio o projeto
de unificação europeia, seria irresistível a tentação do pessimismo e até a adoção de tons apocalípticos, não fosse a lição do poeta, mineiro e universal, a nos advertir que o último dia do ano
não é o último dia do tempo, muito menos o último dia de tudo.
Feita a ressalva poética, cuja ironia
nos autoriza a manter, apesar dos pesares, o otimismo da vontade, cabe
admitir em sua abrangência os efeitos de uma
situação que começa a extravasar poderosamente da economia para a política, suscitando opiniões que aludem, por
analogia, a um dos períodos
mais críticos do século 20. De fato, o que agora crescentemente se toma como referência
é o período que testemunhou a longa guerra civil europeia, iniciada em 1914 e concluída com o conflito generalizado entre 1939 e 1945.
No meio de tudo isso, a Grande Depressão dos anos 1930.
Então, como agora, havia um diagnóstico generalizado em diversas áreas políticas e vocalizado de modo semelhante por intelectuais do amplo espectro democrático, com exceção, naturalmente, dos adeptos das soluções corporativas
e nacionalistas representadas
pelo fascismo e pelo nazismo. O diagnóstico considerava que o século 20, além de assistir à emergência irresistível das massas, padecia
de uma contradição insanável: por um lado, os laços
econômicos internacionalizavam-se
e tornavam os diferentes sistemas nacionais cada vez mais dependentes
uns dos outros; por outro, a incapacidade
de governar politicamente tal internacionalização fazia nações-chave se fecharem nas próprias
fronteiras, estimulando um nacionalismo agressivo ou, no caso do nazismo, abertamente belicoso.
O contexto
crítico dos nossos dias, com a depressão
econômica que se aprofunda, parece suportar a analogia. Pode-se hoje falar,
sem metáfora
de nenhum tipo, de uma economia-mundo, ou seja, de um sistema econômico mundial, formado, no entanto, a partir de forças de mercado livres de qualquer regulação democrática. O esvaziamento da política ou a sua irrelevância
como expressão
da soberania popular assumem
por vezes níveis inéditos. Para dar um exemplo
dessa irrelevância, veja-se a Bélgica, um país que, de resto,
é a "capital" da Europa unificada.
Pois esse país emblemático, das eleições parlamentares
de meados de 2010 até há poucas semanas,
esteve sem
governo formalmente constituído, como se isso fosse rigorosamente dispensável.
Deixemos de lado a
especificidade belga, constituída pela fratura interna entre flamengos e francófonos, que não é o caso de analisar aqui. O exemplo só nos
interessa como
sintoma de que, uma vez mais,
os fatos da economia parecem um "processo histórico natural",
não governado ou pobremente governado
por instâncias políticas incapazes de propiciar segurança social e garantir aos cidadãos,
seja no plano nacional, seja no das instituições supranacionais, um mínimo de participação e sentido de pertencimento.
A mais
recente voz a fazer soar o alarme foi Paul Krugman, ao sublinhar a precária situação da democracia em outro pequeno,
mas representativo, país da mítica Mitteleurope. Na Hungria, diz-nos Krugman, o partido Jobbik comporta-se segundo o ritual e os "valores" do nazismo, a começar pelo antissemitismo
e o patrocínio de um "braço
armado". E o partido
de governo Fidesz, amplamente majoritário, desenvolve políticas de ocupação permanente do poder - anulando a diferença entre partido e Estado -, partidariza e "aparelha"
o Judiciário, além de promover a inviabilização da alternância e estatizar a mídia, tornando-a veículo de propaganda dos donos eventuais do poder. Um quadro no qual, segundo Krugman, embora não haja um Hitler à vista, a possibilidade de colapso do euro seria um problema relativamente menor para as elites políticas europeias e o projeto de unificação.
Nos anos 1930, como se sabe,
havia uma esquerda comunista à frente de um Estado poderoso que, num percurso acidentado de todos os envolvidos,
terminaria, felizmente, por se associar às democracias ocidentais para derrotar o desafio nazi-fascista à civilização. Ainda no Ocidente, especialmente na França e Espanha, comunistas e socialistas puderam se encontrar em trincheiras comuns, ao lado
de democratas "burgueses",
como então se dizia, a partir das políticas de "frente popular". (E até no Brasil, em contexto
diverso, a experiência da ANL, em 1935, sem
contar o desastrado desfecho violento, merece figurar como sinal de aglutinação
das massas urbanas e tentativa de ampliar a democracia.)
Tudo isso é verdade
e deve ainda inspirar aqueles que, à esquerda, se preocupam hoje com o destino de seus próprios países e, ao mesmo tempo, mantêm como horizonte
uma sociedade mundial cosmopolita, culturalmente articulada e socialmente mais justa.
É verdade,
mas não
toda a verdade. O comunismo histórico, portador de reivindicações de mudança substantiva comandada por uma
"classe universal", nascera
de uma ruptura com a democracia política, cujo sistema de garantias deveria ser suspenso na hipótese
de uma tomada revolucionária de poder e construção da nova sociedade sem classes. Aí, como ficaria sempre
mais claro, o seu "pecado oriental",
de que derivariam sociedades fechadas, as quais seriam repudiadas
pelas respectivas populações nos acontecimentos sintetizados simbolicamente na derrubada do Muro de Berlim.
Para evitar
esse resultado catastrófico e, também, atuar produtivamente na crise atual
uma estratégia sensata deveria levar as esquerdas a dialogar com a tradição liberal, reformando-se para incorporar, entre outras, a dimensão do pluralismo.