Valores e interesses
31 de março
de 2011
Demétrio Magnoli - O Estado de S.Paulo
O Brasil
absteve-se de apoiar a intervenção ocidental
na Líbia por temer uma
"mudança de narrativa"
da revolução árabe, explicou o ministro do Exterior, Antônio Patriota. Os bombardeios aéreos da coalizão começaram na undécima
hora, quando as forças de Muamar Kadafi atingiam as entradas de Benghazi, cidade de 1
milhão de habitantes. Tudo indicava que
sem a intervenção
a capital rebelde seria palco de uma tragédia
humana. Os espectros recentes do genocídio de Ruanda, em 1994, e do massacre de
Srebrenica, na antiga Iugoslávia, em 1995, cometidos sob o olhar aterrorizado, mas passivo, da comunidade internacional, desestimularam o
veto da Rússia e da China à intervenção.
A confortável (devo dizer hipócrita?) abstenção brasileira não encontra justificativa
legítima na
preocupação de Patriota. Mas há, de fato,
uma "mudança de narrativa" - e ela se iniciou antes da reunião decisiva do Conselho de Segurança da ONU.
Kadafi mudou a narrativa. Na Tunísia e no Egito, os levantes
populares provocaram cisões no núcleo do poder. Os exércitos
separaram-se dos ditadores
e, então, os regimes caíram. A Líbia, porém, é um Estado singular, que combina estruturas
de poder clânico com instituições típicas do totalitarismo socialista, como os comitês revolucionários. Seu exército regular passou para o lado
dos insurgentes, mas o poder armado efetivo encontra-se nas brigadas especiais, fiéis ao tirano.
A contraofensiva de Kadafi provou que a
insurreição popular poderia
ser esmagada em sangue. A mensagem
chegou à Arábia Saudita, que aproveitou
o precedente líbio para, desafiando a posição de Barack Obama, enviar suas tropas ao
Bahrein. A Síria de
Bashar Assad também entendeu a "mudança de narrativa" como
uma licença para matar manifestantes
em praça pública. O ciclo da revolução árabe não se encerrou, mas ingressou
numa nova etapa, amarga e perigosa.
A metáfora
do "Muro de Berlim árabe" evidencia o sentido democrático da revolução que varre
a África do Norte e o Oriente Médio. Bem ao contrário
do que, imunes aos fatos, asseguram
os arautos do "choque de civilizações", as sociedades árabes erguem-se pela liberdade, não em nome da promessa
salvacionista do fundamentalismo
islâmico. Mas o paralelo tem limites, pois a topografia política do mundo árabe não se parece
em nada com a do antigo bloco soviético na Europa
Oriental. Os países satélites
da URSS apresentavam notável uniformidade de sistema político e obedeciam a um único
centro de poder externo. Os países árabes exibem uma
diversidade de sistemas políticos, que se estendem desde Repúblicas pró-ocidentais baseadas nos exércitos
(Egito, Tunísia, Iêmen) até monarquias
sunitas conservadoras (Arábia Saudita, Bahrein), passando por Repúblicas autoritárias de partido único (Síria) e por um "Estado de massas" (Líbia). Não estamos na Europa de 1989: a revolução em curso
divide-se em cascatas singulares, cujas configurações refletem as particularidades nacionais.
As diferenças não param aí. A União Europeia
serviu como
bacia de captação para as sociedades da Europa Oriental que emergiam das ditaduras
totalitárias. O espectro do
nacionalismo autoritário rondou os países
do antigo bloco soviético, mas
foi conjurado pelo magnetismo do bloco de democracias ocidentais. A revolução fragmentária no mundo árabe, ao contrário,
não conta com nenhuma sinalização na estrada.
As sociedades que
hoje se libertam dos tiranos carecem de tradições democráticas ou experiências pluralistas. Nas margens dos levantes
populares, espreitam as correntes fundamentalistas e, em certos casos,
as organizações jihadistas.
Os árabes não estão condenados à tirania, como
assegura o mantra dos entusiastas
da Doutrina Bush. Contudo também
não iniciaram uma marcha triunfal
em direção à liberdade.
O sentido
da revolução árabe será profundamente influenciado pelos atos do Ocidente. A França não sustentou o ditador tunisiano Ben Ali, seu antigo cliente, e os EUA, depois
de alguma hesitação, explodiram a ponte que os ligava
ao egípcio Mubarak.
A resolução da ONU sobre a Líbia representa
mais que uma iniciativa humanitária providencial: o
massacre dos insurgentes de Benghazi ofereceria uma inigualável narrativa de martírio ao radicalismo
islâmico e ao terror jihadista. Entretanto, cada gesto ocidental deixa entrever um conflito dilacerante entre valores e interesses.
"Para todos aqueles que
se perguntam se o farol dos
EUA ainda brilha com a mesma intensidade, (...) nós provamos (...) que a verdadeira força de nossa nação não
emana da capacidade de nossas armas ou
do tamanho de nossa riqueza, mas do poder persistente de nossos ideais: democracia, liberdade, oportunidade e inflexível esperança." A passagem do discurso da vitória de Obama, em novembro de 2008, inscreve-se na
tradição wilsoniana que busca estabelecer
uma identidade entre os valores
e os interesses americanos. A Realpolitik, contudo,
subsiste no Bahrein, porta de entrada da revolução árabe no cenário estratégico do "golfo do petróleo", onde tropas sauditas
se encarregam do trabalho sujo de repressão sob o silêncio cúmplice do Ocidente.
No Iraque,
em 2003, George Bush revestiu
no celofane da defesa da liberdade uma ocupação
militar definida por sua peculiar interpretação dos interesses geopolíticos americanos. Na Líbia, Obama sacrifica o interesse concreto da cooperação com Kadafi na "guerra
ao terror" no altar dos valores
pregados pelo Ocidente. Há uma
lógica estratégica na aposta
de risco na revolução árabe. O fracasso da Doutrina Bush revelou que o fundamentalismo
e o jihadismo prosperam na estufa
opressiva das tiranias. Por isso,
na Tunísia,
no Egito e na Líbia, os EUA
e seus aliados escolheram um lado. Mas a opção
ousada terá de se estender além da Síria, até o Bahrein
e a Arábia Saudita, sob pena de se esfarelar na incoerência.
SOCIÓLOGO E DOUTOR EM GEOGRAFIA HUMANA PELA USP. E-MAIL:
DEMETRIO.MAGNOLI@TERRA.COM.BR