Os
arquivos do Afeganistão
28 de julho de 2010
Na terça-feira da semana passada, 68 chanceleres se reuniram em Cabul, a
capital afegã, para a 10.ª conferência dos países que de alguma forma
contribuem para a guerra deflagrada em fins de 2001 pelos Estados Unidos e os
seus parceiros da Aliança Atlântica contra o Taleban e a Al-Qaeda sob sua
proteção, responsável pelos atentados do 11 de Setembro. Contrastando com o
discurso do presidente Hamid Karzai, que falava do radioso futuro do seu país,
"como se a guerra não existisse", segundo um diplomata, o clima era
sombrio.
O pessimismo sobre os rumos do conflito e a viabilidade de um Paquistão
capaz de enfrentar por si só a insurgência fundamentalista foram reconhecidos
pela secretária de Estado Hillary Clinton. "Cidadãos de muitas nações aqui
representadas, incluindo a minha própria", observou, "se perguntam se
existe aqui alguma chance de sucesso - e, existindo, se nós outros estamos
dispostos a alcançá-lo." Apenas cinco dias depois, os cidadãos de que ela
falava ficaram sabendo que a situação no país é muito pior do que admitiam os
governos engajados na guerra e até do que informava a imprensa.
Numa operação sem precedentes, pelo menos 91.731 sigilosos documentos
militares e de órgãos de inteligência sobre o Afeganistão foram copiados dos
computadores em que estavam armazenados e remetidos ao site WikiLeaks. Criado
pelo australiano Julian Assange em 2007, baseado na Suécia e muito conhecido
nos Estados Unidos, sua especialidade é divulgar documentos secretos de
presumível interesse público, enviados por seus leitores. Desta vez,
compartilhou o material recebido com o New York Times, o Guardian, de Londres,
e a revista alemã Der Spiegel.
O resultado veio à luz domingo, depois de semanas de análise dos textos,
produzidos entre 2004 e 2009, e da decisão conjunta de retirar deles nomes de
informantes e outros dados capazes de pôr vidas em risco ou prejudicar ações
antiterroristas. Por isso, 15 mil documentos deixaram de ser publicados. Ainda
assim, a Casa Branca considerou o vazamento uma "ameaça à segurança
nacional" americana. O que saiu foi mais do que suficiente para confirmar
o fracasso militar, político, estratégico e moral da empreitada afegã na era
Bush - o que não parece ter mudado sob Barack Obama.
Na realidade, os arquivos divulgados não contêm nenhuma revelação
bombástica, daquelas que derrubam governos. E, reduzidos a pele e ossos, não
trazem nenhuma novidade. Mas a formidável massa de detalhes expostos sobre o
dia a dia da guerra, por sua riqueza assombrosa, confirma de forma
incontestável as piores suspeitas: a guerra não enfraqueceu, mas fortaleceu o
Taleban; embora o Paquistão receba US$ 1 bilhão por ano para ajudar a combater
os insurgentes, o seu temível serviço secreto militar, o ISI, os treina para
enfrentar os EUA; os esforços para conquistar as simpatias dos afegãos são um
fiasco.
Além disso, a morte de civis desarmados, deliberada ou por indiferença
das tropas, e o acobertamento dos incidentes excedem de longe o que se
conhecia. As forças americanas criaram um esquadrão para localizar, interrogar
e assassinar os afegãos suspeitos de terrorismo incluídos em listas preparadas
arbitrariamente e, claro, sem supervisão judicial. Pelo menos 195 pessoas foram
eliminadas em condições que configuram crimes de guerra. Até agora, Washington
não desmentiu nada do que se publicou. E Karzai, o presidente afegão, fez saber
que os documentos descrevem adequadamente o que ocorre no país.
O efeito imediato do vazamento será intensificar as pressões pela
retirada das tropas. Não é de excluir que o presidente Obama antecipe a revisão
do esforço militar no Afeganistão, prevista para dezembro. (Em dezembro
passado, ele anunciou a sua estratégia de contrainsurgência e o envio de mais
30 mil soldados ao país.) A verdade, como confidenciou uma alta fonte, é que
"não sabemos como reagir". Isso vale também em relação ao jogo duplo
do Paquistão - aliado infiltrado de inimigos, do qual os EUA não podem
prescindir. A "guerra por necessidade", como diz Obama, está ficando
pior do que a "guerra por escolha" no Iraque.