A Reforma
Obama - universalização de quê?
14 de abril
de 2010
JOSÉ
CECHIN - O Estado de S.Paulo
Muito está se dizendo a respeito da reforma da saúde aprovada recentemente pelos Estados Unidos. O que ela
propõe? O que tem de comum e de diferente do nosso sistema?
Propostas de reforma de sucessivos governos pretendiam enfrentar dois problemas: o crescimento vertiginoso das despesas per capita e a crescente
fração de pessoas sem nenhum acesso
aos serviços de saúde. Há décadas
as despesas com saúde crescem mais rapidamente
do que a inflação,
os salários e o PIB. Essa escalada
(de 5% do PIB, em 1960, para 17%, em 2009) sobrecarrega os orçamentos públicos (Medicare, para idosos maiores
de 65 anos, e o Medicaid, para
os pobres), aumenta as despesas médicas pagas do próprio bolso e encarece os planos
de saúde. O resultado é o aumento do número de excluídos.
Como ocorre no Brasil, a saúde nos Estados
Unidos é custeada essencialmente pelo setor privado. Os governos participam com menos de 45% do total das despesas com saúde. Na verdade,
o Medicare é financiado por
contribuições de empregados
e empregadores incidentes sobre os salários.
Apenas o
Medicaid é por impostos.
O Estado americano escolheu atender os idosos e os
pobres. Quem não é elegível
aos programas públicos nem tem plano de saúde, paga do bolso ou
fica sem atendimento, o que se mostra coerente com a filosofia individualista dessa sociedade, em contraste com a visão de solidariedade que prevalece na
comunidade europeia.
O Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro
se inspira nos modelos europeus, mas sem os
recursos necessários para desempenhar seu papel.
Nos Estados Unidos, até
agora o seguro-saúde é regulado
pelos Estados, com escassa regulação federal. Era o contrato de seguro-saúde que estabelecia as condições de cobertura e suas cláusulas que permitiam negar
cobertura para pessoas com doenças pré-existentes, excluir segurados de altos custos, variar sem limite
os preços entre as faixas etárias, fixar limites financeiros
para as despesas, exigir coparticipação no pagamento dos procedimentos em valores que
superavam a renda das pessoas, entre outros. Já no Brasil, a regulação, de 1998, veda todas essas
limitações.
O presidente
Obama, durante sua campanha, prometeu enfrentar as questões do crescimento exorbitante das despesas e a exclusão de muitos americanos dos serviços de assistência à saúde. Senado e Câmara aprovaram
projetos de reforma, mas sem contemplar
todos os dispositivos prometidos.
A empreitada era previsivelmente árdua, como atestado pelas
inúmeras propostas rejeitadas, especialmente no que toca à contenção
da escalada das despesas. É que despesas
de alguns são receitas para outros
e os que as perdem colocam insuperáveis obstáculos à efetivação da reforma. Assim, pouco de concreto havia nos projetos
aprovados em relação à contenção dos gastos.
A lei sancionada, na verdade, acrescenta custos ao sistema
de saúde na proporção em que
são sobretaxados os seguros de mensalidades
altas, os serviços médicos ou os materiais
e medicamentos. Resta ver se poderá cumprir seu outro objetivo,
que é a universalização do acesso. O projeto sancionado é passo importante nessa direção porque aumenta a linha de corte da renda que torna os
pobres elegíveis ao Medicaid.
A reforma
é, na verdade, a universalização do seguro-saúde privado com subsídios do governo. Entenda-se bem: não se trata
da universalização do direito
individual à saúde e dever
do Estado, como estabelece
a Constituição brasileira. Ao contrário, a lei americana fixou como dever
das pessoas terem, e das empresas de oferecerem, seguro-saúde e fixou multas pelo descumprimento.
Ao indivíduo capaz cabe a responsabilidade financeira por seu seguro-saúde.
A lei torna o seguro-saúde obrigatório e subsidia as mensalidades sempre que superarem certo
porcentual da renda. Obriga as empresas a oferecerem
planos para seus colaboradores, também com subsídios para as pequenas e multa pelo não
cumprimento. Veda às seguradoras negarem cobertura em razão de doenças
pré-existentes e de interromperem
unilateralmente os contratos. Obriga os planos das empresas a manterem como segurados os seus aposentados.
Cria uma bolsa/mercado para facilitar a aquisição
do plano. Fixa limites à variação
das mensalidades entre as faixas
etárias. Monitora os reajustes
de preços.
A nova lei
de saúde americana é um avanço. No entanto, o contraste com os sistemas de saúde europeus não poderia ser maior. Na Comunidade Europeia prevalecem sistemas em que
é dever do Estado prover saúde, financiada por impostos. O Brasil entende saúde como dever
do Estado e direito da pessoa,
a ser financiada por contribuições sociais. Como o
Estado não tem conseguido cumprir adequadamente com esse dever, as pessoas escolhem, mesmo sem abdicar
do seu direito constitucional, contratar planos privados de saúde.
A sociedade
americana fez outra escolha ?
reservou para o Estado a proteção a miseráveis e a idosos ? e responsabiliza os
indivíduos por sua própria cobertura.
O avanço de agora obriga as
pessoas a terem seguro-saúde, o que já é uma intervenção
do Estado, e adiciona mais componente estatal, que é o subsídio. O Estado americano passa a ter maior ingerência
regulatória no sistema de saúde, embora ele
continue privado em sua essência.
Essas são escolhas que as sociedades devem fazer. Serão determinadas por
suas histórias, crenças, religiões, culturas, níveis de instrução e riqueza. Se haverá alguma
que seja inequívoca e universalmente
superior e venha a se sobrepor
às outras é difícil dizer. Não parece que isso
esteja no horizonte.
SUPERINTENDENTE DO INSTITUTO DE ESTUDOS DE SAÚDE SUPLEMENTAR, FOI MINISTRO DA PREVIDÊNCIA E ASSISTÊNCIA SOCIAL