O polêmico ano 1 de Obama
Pelas origens
do protagonista mas não só, o termo
"sem precedentes"
colou-se à pele do presidente Barack Obama. Mas ele dispensaria
de bom grado o mais recente ineditismo
associado à sua figura. Afinal, nenhum dos seus antecessores, ao completar um ano na Casa Branca,
ganhou de aniversário um
bolo de fel. O presente foi confeccionado pela maioria do eleitorado de Massachusetts um Estado que
historicamente não perde para nenhum
outro em matéria de simpatia pelo Partido Democrata.
Na eleição extraordinária para preencher a vaga do senador Ted Kennedy, morto no ano passado
depois de 46 anos de mandatos consecutivos marcados por consistentes
posições de esquerda, a candidata democrata Martha Coakley foi derrotada
pelo republicano Scott
Brown, um novato senador estadual mais conhecido
por já ter
posado seminu para uma revista
masculina. Para Obama, foram
duas lautas porções de amargura.
A primeira, os efeitos
práticos da transposição política de uma vaga no Senado. Os democratas perderam a chamada maioria qualificada de 60 cadeiras a 40 e, com isso, o poder regimental de impedir que a oposição obstrua a tramitação de projetos do governo, a começar do formidável plano de reforma do sistema de saúde, a mais vistosa bandeira
eleitoral de Obama. Assim como a Câmara
dos Representantes, o Senado
já aprovou uma proposta própria
nesse sentido. Doravante, poderá bloquear a votação do texto que unifique
as duas. A segunda fonte de amargura são os efeitos
simbólicos do resultado. Cristalizam a percepção, atestada nas pesquisas,
de que a Obamania que brotou de sua
campanha e cresceu com o seu triunfo foi
amplamente substituída pela condenação às suas políticas
e ao seu desempenho. Em um ano, o seu índice de aprovação caiu de quase 70% para 50%. A desaprovação
foi de 12% para 44%.
No limite,
Obama só tem a culpar a si próprio por
isso o que admitiu com humildade numa entrevista à rede ABC de televisão, anteontem. Ao assumir,
parecia que ele acreditava piamente no seu toque mágico para unir
o país em torno de propósitos comuns que deixariam
para trás o conflito e a discórdia dos anos Bush, como
proclamou no discurso de
posse. Decerto contava com
o impacto de sua eleição "sem precedentes", o seu potencial para transformar carisma em liderança e o esfarelamento do Partido Republicano. Mas, sob a servidão de uma crise de proporções mundiais e da herança
maldita do bushismo, que o obrigaram a lançar um pacote de estímulo econômico da ordem de US$ 800 bilhões e a sangrar o orçamento nacional com duas guerras em
curso, Obama deixou a saúde por conta
dos políticos e foi refazer a imagem dos Estados Unidos no mundo com relativo sucesso, embora China, Irã e Israel, cada qual a seu modo,
o deixassem de mãos abanando.
Ele não deu
o peso devido à rearticulação
republicana sob o comando da extrema direita
na mídia
convencional e na blogosfera. Explorando a insegurança da população diante do desemprego galopante e das casas próprias ameaçadas, os velhos
adeptos do capitalismo sem freios passaram
a acusar o governo de fazer o jogo do grande capital financeiro (e, depois, da indústria
automobilística), apontando
para a ocupação da Casa Branca pelas mesmas sumidades
cuja complacência ou mais do que
isso com Wall Street jogou
a economia no abismo. Ao mesmo tempo, passaram a bombardear o plano da
saúde com uma virulência sem limites. Por exemplo,
o socialista Obama ia criar "comitês da morte",
para selecionar quem teria ajuda
médica e quem seria marcado para
morrer. Enquanto isso, o movimento da "Festa do Chá" denunciava a suposta intenção de Obama de arrancar o couro dos contribuintes para financiar o trilionário esquema da "medicina socializada" e enfrentar um déficit público de 11% do PIB ? como se não
tivesse surgido da gastança desenfreada
do governo Bush.
Cerebral, avesso
à confrontação, esquecido
de que a polarização política nos EUA
é profunda e duradoura e, por fim, preso
à prioridade "reforma da saúde" ante "empregos e casas", o presidente mal reagiu ao vitríolo dos seus detratores, deixando que conquistassem
vantagem na formação da opinião
pública. Disso decorre
o predomínio das avaliações
negativas sobre o seu primeiro ano
no poder, cegando muitos americanos para o avanço extraordinário
que o seu governo representa em comparação com o do antecessor.