Filhos da intervenção

 

O avanço de um movimento jihadista internacional mostra que o Iraque, 11 anos após a invasão dos EUA, segue como alvo de interesses estrangeiros

 

Rogério Simões e Fillipe Mauro

 

"O futuro do Iraque estará agora nas mãos de seu povo.” Ditas em dezembro de 2011, as palavras do presidente americano, Barack Obama, soavam triunfantes. Obama encerrava a presença militar americana no Iraque, mais de oito anos depois da invasão que derrubara o ditador Sad­dam Hussein. Crítico da guerra de George W. Bush, seu antecessor, ele esperava conseguir manter-se longe do Iraque. Sua aposta carregava uma leve esperança de que, mesmo por vias tortas, as teorias dos neoconservadores do governo Bush estivessem corretas. Obama foi um otimista.

 

Os ideólogos do governo Bush diziam que a democracia poderia ser imposta de fora para dentro. Exportá-la era, com base nos princípios eternizados pelo presidente Woodrow Wilson (1913-1921), a obrigação de uma superpotência liberal e democrática. Ao torcer para que o Iraque finalmente se estabilizasse, Obama confiava que algo de bom ainda pudesse ser tirado da invasão do Iraque, em 2003. Diante dos mais recentes acontecimentos no Iraque, tomado de assalto pela milícia fundamentalista sunita EIIL (Exército Islâmico do Iraque e do Levante), tal confiança perdeu força. Ainda não sinais de ganhos concretos ou duradouros vindos da derrubada de Saddam. Volta a assombrar Bagdá, Obama e todo o Oriente Médio a perspectiva de que o Iraque se fragmenteapós uma nova onda de combates, massacres e crimes de guerra de toda sorte. Incapaz de caminhar pelas próprias pernas, o Iraque parece preso a divisões internas e a um ciclo interminável de intervenções. Na semana passada, o premiê xiita Nouri al-Maliki pediu a Washington que ataque, pelo ar, as forças do EIIL. Os americanos podem estar a caminho, novamente, de Bagdá.

 

Diferentemente do que sugeria a fala de Obama em 2011, o “povoiraquiano não é um . Sob a mão firme de Sad­dam, a maioria xiita, reprimida pelo regime, convivia em relativa harmonia com sunitasenquanto os curdos desfrutavam significativa autonomia no norte. Saddam exercia uma espécie de monopólio das atrocidades no Iraque. A partir de 2003, sem ele, tudo mudou. O mercado da matança foi pulverizadonuma escala infinitamente maior. Governo, milícias sunitas, paramilitares xiitas, forças curdas, cada um tentava garantir seu espaço. Xiitas e sunitas iniciaram uma troca de atrocidades sem fim. A única agência reguladora com algum poder de persua­sãomilitar, claroeram as forças americanas. Elas faziam tão bem quanto mal. Se apoiava o novo Exército local recém-treinado e combatia insurgentes, a ocupação também servia de fator de instabilidade, como combustível a movimentos por soberania. Sem ela, o novo regime, xiita, não conseguiu pacificar as relações internas. Foi acusado de marginalizar os sunitas e de servir aos interesses do Irã. O futuro do Iraque ainda segue bem longe das “mãos do povo”, como sonhava Obama.

 

Os acontecimentos no Iraque nos últimos 11 anos abalaram a crença no intervencionismo liberal defendido pelos wilsonianos. No governo Bush, esses princípios basearam até mesmo uma doutrina militarpopularmente conhecida como Doutrina Bush –, transformada em documento oficial em 2012 e abandonada no governo Obama. Segundo ela, diante de novas ameaças mundo afora, os EUA deveriam agir preventivamente, antes mesmo que elas se aterializassem. Essa ideia foi abalada pelos fracassos no Iraque e no Afeganistão. Em 2012, Obama recuou uma possível intervenção na Síria contra o ditador Bashar al-Assad. Ele se convenceu dos argumentos do russo Vladimir Putin, segundo quem uma ação externa fortaleceria os mesmos radicais que hoje aterrorizam o Iraque.

 

 

O EIIL nasceu de uma cisão da al- Qaeda no Iraque, em abril de 2013, como um efeito direto da guerra civil na Síria, onde jihadistas estrangeiros organizaram-se para combater Assad e de onde retiraram recursos para financiar sua luta. O grupo defende a criação de um Estado islâmico sunita numa região que engloba, principalmente, o norte do Iraque e o leste da Síria. No início, formavam um grupo desorganizado. Cresceram em tamanho e força em dezembro, quando ocuparam a cidade sunita de Ramadi. O centro do Iraque, representado pela província de Anbar, e boa parte do norte do país vivem meses sob o comando do EIIL. Não dados oficiais sobre seu tamanho real. O Ministério do Interior do Iraque calcula em milhares de integrantes. Em janeiro, seu líder militar, Abu Bakr al-Baghdadi, declarou a independência das regiões sob seu controle. Desde que a organização marchou em direção a Bagdá, duas semanas, o pânico imperou. Três importantes cidadesFalluja, Mosul e Tikritforam tomadas pelos milicianos em poucos dias. Tal Afar também sucumbiu. Acua­do, o Exército abandonou Kirkut, importante produtora de petróleo, tomada em seguida pelos curdos. Centenas de milhares de iraquianos fugiram de suas casas e cidades. Relatos de assassinatos a sangue frio de oponentes pelo EIIL espalharam-se pelo mundo.

 

É difícil negar que o EIIL seja a mais nova encarnação dos efeitos da desastrada ocupação de 11 anos atrás. Não apenas pelo que ela provocou, mas por ter aberto as portas para outras intervenções. O Iraque, assim como a Síria, tornou-se um campo de ação de guerreiros jihadistas estrangeirossauditas, líbios, tunisianos, mas também europeus. Peter Neumann, pesquisador do King’s College de Londres, afirmou à rede britânica BBC que 80% dos milhares de estrangeiros que foram à Síria para lutar na guerra civil aderiram ao EIIL. Vítima da intervenção, o Iraque segue como um campo de práticas ideológicas estrangeiras, seja a democracia americana, seja o fundamentalismo saudita.

A ironia iraquiana parece ser a impossibilidade de o país caminhar sozinho, preso a um ciclo vicioso de intervenções. Paul Bremer, diplomata americano nos anos da invasão, escreveu no The Wall Street Journal que Obama errou ao retirar os Estados Unidos do Iraque. Isso significou uma perda imediata de inteligência (informação privilegiada) no Iraque.” Seria a solução para o país, tomado por jihadistas de várias nações, uma intervenção internacional ainda maior? Washington considera um possível retorno, nem que seja apenas aéreo. O Irã está determinado a proteger locais sagrados dos xiitas – e o governo do vizinho. A Arábia Saudita, acusada pelo Irã de fomentar instabilidade na Síria e no Iraque, com a exportação de jihadistas, continuará atuante na região. Longe de ser uma nação livre e democrática, o Iraque segue como um campo de batalha.