Ébola
João Cardoso Rosas
08/10/14 00:05
Num cenário de catástrofe, o ébola pode causar milhões de vítimas. Mas, antes disso, provocaria uma tal onda de pânico que arrasaria com a confiança mínima na base da qual funcionam a economia e a sociedade.
Há três causas para a desestruturação acelerada de uma sociedade politicamente organizada. A primeira é a guerra civil. Enquanto uma guerra externa pode até fortalecer a unidade de um povo, a guerra civil quebra-a a partir de dentro. A segunda causa de desestruturação rápida são as catástrofes naturais. Quando estas são de grande magnitude e a resposta política é frouxa, as consequências são devastadoras ao nível da ordem social. A terceira causa a ter em conta é a das epidemias graves e mortais, como é o caso do ébola - que encontrou em algumas sociedades já parcialmente desestruturadas um campo propício à sua propagação.
Note-se que as sociedades mais sofisticadas da Ásia, Europa e América passaram recentemente por grandes sustos ou ameaças que nunca atingiram um nível de catástrofe: a gripe das aves, a gripe A... Como na história do menino e do lobo, estes falsos alarmes contribuíram para uma certa displicência da opinião pública e mesmo dos poderes públicos em relação ao problema das pandemias. A crise do ébola, acabada de chegar à Europa, deve agora acordar-nos dessa letargia.
Vem isto a propósito da incrível incompetência das autoridades sanitárias espanholas para lidar com o problema em sua própria casa (que acaba por ser também a nossa, tão grande é a proximidade). A Espanha repatriou dois doentes com ébola que morreram pouco depois de chegar. Sendo certo que nada existia para lhes oferecer em solo espanhol - ao contrário dos doentes repatriados para os Estados Unidos, que tiveram acesso a terapia experimental -, a decisão do repatriamento é desde logo discutível.
Uma vez feito o repatriamento, os doentes foram internados num hospital de Madrid e sabe-se agora que o pessoal que com eles lidou não tinha equipamento de protecção adequado. Material contaminado foi transportado por áreas públicas do hospital. A ajudante de enfermagem que foi contaminada - o primeiro caso em solo europeu - foi de férias no dia a seguir à morte do segundo doente, embora seja conhecido que o período de incubação é de 20 dias. Comunicou ao hospital que tinha febre, mas teve de esperar seis dias e ir a uma urgência normal para que lhe fizessem os testes.
Num cenário de catástrofe, o ébola pode causar milhões de vítimas. Mas, antes disso, provocaria uma tal onda de pânico que arrasaria com a confiança mínima na base da qual funcionam a economia e a sociedade. É claro que este cenário é extremo, mas não é afastado pelos modelos matemáticos existentes.
Quando vemos uma actuação como a das autoridades espanholas ficamos a saber que, ao nível da incompetência política e sanitária, tudo é possível. Esperemos que a situação seja rapidamente corrigida e, sobretudo, que as autoridades portuguesas tenham melhor preparação e mais discernimento.