A grande guerra
[Versão
integral da coluna publicada
hoje no Diário Económico]
Na semana passada os jornais noticiaram
o “fim” da I Grande Guerra, com o pagamento
pela Alemanha da última parcela das reparações de guerra. Referindo-se ao assunto, o Daily Telegraph resumiu de forma clara
um mito duradouro: as reparações de guerra impostas à Alemanha constituíram um fardo “insuportável”, cujas consequências económicas “determinaram” a ascensão de
Hitler e a eclosão da II Guerra Mundial. Este mito concorreu
para a entronização intelectual de Keynes, promovida por uma historiografia
ideológica que o representou como o único a antecipar as consequências desastrosas de uma paz que
exigiu à Alemanha reparações “impossíveis” de pagar e “humilhantes”.
A aproximação
mais aceitável à verdade histórica sugere uma Alemanha
depois do armistício muito diferente, em particular no que respeita à relação entre as políticas macroeconómicas prosseguidas no pós-guerra e as reparações a pagar. Nem o montante de reparações provocou uma dívida,
pública e externa, insustentável, nem as reparações foram a principal causa da hiper-inflação alemã. Em 1921, a dívida alemã em
% do PIB era inferior à britânica
e as reparações pagas nunca ultrapassaram os 8,3% do rendimento nacional –muito distantes das previsões de 50% propostas pelo “clarividente” Keynes.
Aliás, os desequilíbrios
macroeconómicos germânicos foram provocados pela estratégia defendida por Keynes: desvalorizar a moeda para aumentar as exportações e gerar receitas para pagar
a dívida externa; aumentar a despesa pública para estimular
a inflação e reduzir o valor real da dívida interna. Como os
parceiros comerciais alemães passavam por um período de deflação, as alterações dos preços relativos anularam o efeito da desvalorização nominal sobre a competitividade e a hiper-inflação
destruiu a moeda.
Hitler não perdeu tempo a assegurar aos
alemães que o partido nazi acabaria
com a “roubalheira da inflação”.
Foram as desastrosas políticas recomendadas por Keynes e não as reparações, cujo valor real acabou por ser irrisório, as responsáveis pela grave crise económica do pós-guerra, onde floresceu a demagogia nacional socialista.
Quanto à “humilhação”, a reacção negativa da população alemã iniciou-se antes mesmo do tratado estar assinado.
A aceitação dos termos do armistício pelo governo social-democrata alemão em 11 de Novembro de 1918 levou imediatamente à designação das forças políticas favoráveis ao fim
da guerra como os ‘criminosos de Novembro”. Não tendo sofrido uma
invasão nem danos territoriais significativos, os alemães convenceram-se rapidamente de que não tinham perdido
a guerra, pelo que qualquer acordo
que os tratasse
como efectivos
derrotados seria sempre “humilhante”. A sombra de ilegitimidade e de fraqueza que se projectou sobre a república de Weimar desde a aprovação da constituição
em 1919 é indissociável desta sensação generalizada de humilhação. O ressentimento germânico sustentou um dos mitos mais duradouros e flagrantemente inconsistentes com
os elementos de informação disponíveis: o mito da tentativa
deliberada pelos Aliados de extermínio por inanição. Na realidade, foram as autoridades alemãs que recusaram a
oferta de ajuda alimentar. Em Março de 1919, navios
aliados iniciaram o transporte de ajuda alimentar de forma unilateral.
Outro mito
persistente representa o presidente americano Woodrow
Wilson como um obstinado “destruidor de impérios”. É indiscutível que Wilson acreditava em vacuidades
ideológicas potencialmente perigosas, como
“tornar o mundo seguro para a democracia”
–um slogan cujo potencial desestabilizador foi ilustrado pelos neo-conservadores, a progenitura intelectual de Wilson; o que é duvidoso é que as convicções de Wilson tenham sido decisivas na reordenação geopolítica da Europa. Quatro circunstâncias contribuíram para a fragmentação dos impérios derrotados em estados nacionais.
A primeira, foi o caos que se seguiu
ao armistício: os políticos americanos
responsáveis pelas negociações de paz
foram lentamente descobrindo
uma sucessão de acordos e concessões secretas que os
Aliados haviam feito desde o início
da guerra e que limitaram substancialmente as negociações. A segunda foi a dissensão nacionalista, que fomentava há mais
de um século: os impérios multi-étnicos estavam longe de ser o idílio de harmonia posteriormente inventado por alguns saudosistas.
O império dos Habsburgos, por exemplo, simplesmente
desagregou-se e, por ironia, a sua dissolução
só poderia ter sido contrariada
por recurso à força militar –precisamente o tipo de construtivismo político que os críticos
de Wilson rejeitam. Mesmo que existisse a vontade de preservação do império, e manifestamente não existia, a principal razão de queixa da Hungria não foi
a destruição da unidade
imperial mas sim o facto de
3 milhões de magiares terem ficado excluídos
da fronteira do novo estado
nacional.
A terceira foi o interesse estratégico da França, que pretendia
gerar um balanço de poderes capaz de contrariar o poder militar germânico com a criação de estados nacionais, designadamente com a recriação da Polónia. A quarta e mais importante
consideração no reordenamento
geopolítico europeu, concorrente com os desejos franceses, foi a vontade de criação de um “cordão sanitário” de novos estados susceptível de conter o “vírus” do bolchevismo, dificultando a expansão para ocidente
da barbárie comunista. A maior preocupação
dos Aliados era evitar a propagação da “revolução mundial” anunciada por Trotsky. As ordens de
Wilson a respeito do regresso
do contingente militar norte-americano que havia combatido
na Europa são esclarecedoras do receio de “contágio” comunista: em 1919, preocupado com a possibilidade
dos soldados negros regressados da Europa serem um meio de disseminação das ideias bolchevistas nos EUA, decretou uma
espécie de “quarentena”. Porquê apenas os
soldados negros
não é claro, mas a medida é elucidativa quanto ao receio da disseminação
do comunismo.
A narrativa
repetida pelos jornais a propósito das consequências da paz de Versalhes contribui para perpetuar uma imagem distorcida
do keynesianismo, que muito antes do advento
do “Estado social” já causava
estragos assinaláveis. Se a
guerra mundial de 1914-18 está encerrada, a “grande guerra” para desentranhar a influência intelectual
de Keynes das sociedades ocidentais
ainda mal começou.