A frágil civilização

 

por João César Das Neves

 

Sexta-feira os Estados Unidos descobriram que décadas violam a sua Constituição. Dada a suprema importância e atento cuidado que a sociedade americana sempre concedeu à sua lei fundamental, isto é terrível. Pior, a descoberta foi feita por nove pessoas, radicalmente divididas entre si. E o tema da violação é não um detalhe técnico mas um elemento decisivo da vida. O mundo tem a sua potência dominante numa situação surreal!

No passado dia 26 de Junho o Supremo Tribunal norte-americano tomou a decisão final no caso Obergefell vs. Hodges. O voto dos juízes determinou, pela margem mínima de cinco contra quatro, que os Estados não podem impedir o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

 

O argumento veio da 14.ª emenda à Constituição, aprovada a 9 de Julho de 1968, e referente aos direitos civis. A luta pela igualdade racial foi longa e dramática e conseguiu impor o fim da discriminação legal entre pessoas. Neste caso, porém, essa invocação incorre num erro flagrante, pois não existia nenhuma desigualdade jurídica entre pessoas, tal como a decisão não aumentou a igualdade. Antes todos os cidadãos estavam na mesma circunstância perante a lei, pois nenhum, homossexual ou heterossexual, podia casar com alguém do mesmo sexo; agora qualquer cidadão, heterossexual ou homossexual, o pode fazer. Não estava, portanto, em causa qualquer disparidade de direitos entre cidadãos.

 

O que se discutia era uma questão de igualdade entre actividades, algo completamente diferente. Antes a união entre pessoas do mesmo sexo não era considerada equivalente ao casamento, e agora é. Mas a 14.ª emenda não trata de igualdade entre acções mas entre pessoas. Existe pois um grave erro formal e jurídico na decisão de sexta-feira.

 

Haverá também um erro substancial? Será o casamento possível entre pessoas de sexo diferente? O problema é controverso. Aliás, devido à intensa exaltação ideológica, é algo que dificilmente se pode discutir hoje serenamente. A própria partição do tribunal revela essa polémica e torna fragilíssima a sentença, que realmente nada resolveu. Os cinco juízes decisivos têm contra si milénios de serena evidência. As práticas homossexuais sempre existiram, como tantas outras relações, adultério, amizade, incesto, camaradagem, sem que nenhuma civilização as tenha considerado equivalentes à família e ao casamento. Pode até dizer-se que a poligamia, ainda proibida na Constituição americana, esteve historicamente mais próxima da conjugalidade que a união homossexual.

 

A diferença não é apenas histórica mas substantiva. É verdade que existem relações de amizade mais verdadeiras e profundas do que muitos casamentos, como vizinhos mais próximos do que os pais, ou estranhos mais fiéis do que irmãos. Mas a família é algo único e incomparável. Basta confrontar a Parada de Orgulho Gay com as Noivas de Santo António para perceber que se trata de realidades muito distintas.

 

Isto não significa falta de respeito por essas relações, como uma discordância não ofende o tribunal. Mas a lei não muda o que as coisas são e, por muito que a ideologia ou os diplomas o imponham, o casamento permanece algo único.

 

Existe ainda um problema político essencial. A lei, envolvendo-se em temas destes, corrompe-se a si mesma antes de ofender a natureza. O Estado não regula nem pode regular o amor entre pessoas. No dia em que uma maioria parlamentar quiser estatuir relações íntimas cai no totalitarismo extremo. Por isso, ao longo dos séculos, nunca reis ou governos casaram pessoas, mas as tradições culturais e religiosas. O casamento civil apareceu nas últimas décadas, quando a inflação regulamentar quis intrometer a lei em imensos campos.

 

Mesmo então, os inúmeros tipos de amor ou amizade, da lealdade militar às relações familiares, continuam sem implicar um documento jurídico. De facto, a legislação criou um único contrato de relação pessoal, o casamento, devido à sua influência social única. Deste modo, a decisão de 26 de Junho, além de errada juridicamente e socialmente perversa, é politicamente injustificada, abrindo a porta a múltiplas equivalências, com dignidade comparável.

 

O pior, porém, encontra-se noutro nível. Acima de tudo, o mal da decisão é manifestar a profunda fragilidade da Constituição americana, cujos princípios fundamentais deviam estar acima das modas culturais. Quando nove votos pretendem mudar a essência da vida humana, toda a civilização está em risco. Isso é muito mais grave e perigoso do que o efeito directo da sentença, aliás limitado a grupo infimamente minoritário.