Islão e democracia são compatíveis

 

por Leonídio Paulo Ferreira

 

Sobre as promessas da Primavera Árabe ouçamos um homem que nasceu durante a Primeira Guerra Mundial: "Temos hipóteses de estabelecer - hesito em usar a palavra democracia - algum tipo de sociedade aberta e tolerante. Se isso for feito dentro dos sistemas, segundo as suas tradições." O britânico Bernard Lewis, quase centenário, é um dos mais célebres islamólogos. quatro anos, foi esta a resposta ao Wall Street Journal, quando a queda dos ditadores na Tunísia e no Egito levava a crer que uma vaga de democracia percorreria o mundo árabe. As cautelas de Lewis são hoje compreensíveis, sobretudo na semana em que a Tunísia sofreu um atentado que visou pôr em causa o mais bem-sucedido país da Primavera Árabe, talvez não por acaso aquele onde esta começou. "Estes terroristas na Tunísia tinham a democracia como alvo", denunciou no Guardian Lina Ben Mhenni, que em 2011 se celebrizou com Tunisian Girl, relato de como uma blogger árabe ajudou à queda de Ben Ali.

 

Mubarak foi deposto e preso pouco depois de Ben Ali se ter exilado na Arábia Saudita. Houve eleições livres e um velho opositor, Mohamed Morsi, dos Irmãos Muçulmanos, venceu. Entretanto, os militares mostraram quem mandava no Egito e depuseram o primeiro presidente civil da história do país. O homem forte das forças armadas, o general Sissi, despiu então a farda e foi eleito. É esta a síntese da Primavera Árabe no Egito, onde a ausência de turistas deixou a economia de rastos - crise minorada pela injeção de capitais sauditas e koweitianos.

 

Após meses de guerra civil, desequilibrada por um bombardeamento com chancela da ONU, as forças fiéis a Kadhafi foram derrotadas na Líbia e o ditador, no poder desde 1967, morto. Se desde cedo se percebeu que alguns dos rebeldes hesitavam entre o banditismo e a Al--Qaeda, a vitória dos liberais nas primeiras eleições trouxe esperança. Mas hoje dois governos, todos parecem combater todos e uma filial do Estado Islâmico persegue os cristãos. Uma triste síntese da Primavera Árabe numa Líbia que com escassa população e abundância de poços de petróleo podia ser um oásis.

 

Um ano depois do início da Primavera Árabe, Ali Saleh negociou a sua saída no Iémen. Antes chegara a ficar ferido num ataque. Sucedeu-lhe em fevereiro de 2012 o vice, que se fez eleger presidente com promessas de democracia. Mas com o país dividido entre tribos e células da Al-Qaeda, uma rebelião xiita assumiu o poder e é agora atacada à bomba pelo Estado Islâmico. Outra síntese pouco animadora.

 

Não falemos, pois, no Bahrein, onde a revolta popular contra o rei foi enquadrada na velha rivalidade entre xiitas e sunitas e, perante a ameaça de influência do Irão, a Arábia Saudita logo enviou tropas. Nem regressemos à muito falada Síria, onde uma revolta contra Assad se transformou numa revolução jihadista que o regime enfrenta quatro anos com sucesso, sobretudo desde que o mundo descobriu que um ditador árabe laico pode ser um mal menor comparado com o Estado Islâmico.

 

Vejamos antes como até alguém como Tahar ben Jelloun, o marroquino autor de L"Étincelle - Révolte dans les pays arabes, se deixou levar pelo entusiasmo da Primavera Árabe: "A violência libertadora das revoltas não se verá travada pela repressão. É viva e criativa. Encarna numa nova geração de jovens, alguns dos quais viveram no estrangeiro e que, ao contrário dos pais, abriram as janelas que dão para o mundo. Viram como vivem outros jovens, comprovaram que a liberdade é sinónimo de vida. Como num sonho, vislumbraram de repente que também têm a possibilidade de viver melhor, de acabar com as ditaduras, de recuperar a dignidade."

 

Utopias à parte, a Tunísia poderá triunfar. Bourguiba, o pai da independência, -la moderna. Deu direitos às mulheres e abriu o país. Os tunisinos aprenderam na escola que se a sua sociedade é muçulmana tem raízes mais antigas, sejam Cartago ou essa Roma que a derrotou. E é inspirador que tanta gente tenha saído à rua em Tunes depois do ataque ao Museu do Bardo, mesmo que assuste que ao mesmo tempo milhares de tunisinos integrem o Estado Islâmico.

 

São frágeis as experiências democráticas no mundo árabe. Marrocos vai no bom caminho, teve um primeiro-ministro socialista. Mas o papel do rei significa uma democracia tutelada. no Líbano a situação é diferente: o pluralismo político tem de coexistir com uma Constituição que reserva a presidência a um cristão e o governo a um sunita. Quanto à Argélia, os partidos existem, as eleições realizam-se, mas os generais mandam.

 

Mas mundo árabe e mundo islâmico não são sinónimos. E esse é o erro dos que elaboram teorias sobre a incompatibilidade do islão com a democracia, às vezes indo buscar o ano da Hégira, um calendário que começa em 622, para argumentar que os muçulmanos vivem na Idade Média e, portanto, não conheceram nem o equivalente do Renascimento nem o Iluminismo.

 

Não é difícil encontrar exemplos de democracias em países islâmicos. A Turquia é o mais óbvio, mesmo que fora dos 24 países que o exigente Índex da Economist como democracias perfeitas. Indonésia, Malásia ou Senegal também são palco de concorrência entre partidos e de pluralidade nos media, dois indicadores de democracia. E que dizer do Paquistão, apesar de ter metade da sua história marcada por generais-presidentes? Não é a falta de partidos ou a ausência de alternância no governo o grande mal do país, o que também relembra que a democracia nunca é perfeita. Ora, um jornal paquistanês, o Dawn, tempos dedicou um editorial à Tunísia, quando foi eleito presidente Essebsi, um laico: "O Exemplo Tunisino" era o título. Que os tunisinos, laicos ou islamitas como os do partido Ennadha, continuem a acreditar que a democracia pode ser árabe. E surpreendam, aos 98 anos, Lewis.