Quando os EUA mentem

 

Francisco Carlos Teixeira

 

A versão de incapacidade de formar um Estado viável, em razão de divergências religiosas, oculta a continua e longa intervenção ocidental no Mundo Árabe.

 

A imprensa ocidental, e por vício habitual de cópia, a mídia brasileira, resolveu assumir uma narrativa da atual e crítica situação do Oriente Média em termos de oposição intra-islâmica, colocando frente à frente a oposição entre as diversas concepções do Islã, em especial entre sunitas e xiitas. Em face do radicalismo das duas interpretações da mensagem do Profeta Mohammed o Islã estaria, definitivamente, dividido e a formação de unidades estatais viáveis seriam impossíveis.  De fato, ambas as vertentes se enfrentam, desde a morte do Califa Ali – primo e genro do Profeto -  aqueles que defendiam a manutenção indicativa do “Califado” nas mãos dos ricos comerciantes do clã coraixita e os demais, que defendiam a linha sucessória na família do Profeta – com os descendestes de sua filha Fátima casada com Ali – tornou-se um ponto de forte divisão. O califado, esta forma de governo religioso e laico do Islã, foi formalmente extinto entre 1923 e 1924, quando os turcos consolidaram a República em seu país, e o monarca turco, o sultão, que era também o califa, perdeu seus títulos. Desde então o Islã não possui um califa, seja de tradição sunita, seja de tradição xiita.

 

Tal divisão, entre sunitas (tradicionalistas) e xiitas ( de “shia”, os partidários de Fátima e Ali ) só se aprofundou desde o cisma do século VIII: contatos com o mazdeísmo persa e cristianismo bizantino e a heresia nestoriana, o Islã xiita assumiu aspectos bastante diferentes do sunismo tradicional, admitindo romarias, cerimônias de flagelação, culto aos homens santos, relíquias e santuários (túmulos de homens santos, por exemplo em Karbala e Najaf), além de uma total repulsa ao “califa” ( de “kalifat rasúl Allah”, onde “califa” é o título do “sucessor” enviado por Deus, e que guardaria em si o poder civil e religioso). Após o assassinato de Ali, sangue do Profeto, e seus filhos, todos os “califas” (os “sucessores” seriam ímpios e carregariam a culpa do derramamento do sangue do verdadeiro e único Profeta.

 

O domínio turco sobre os árabes – desde o século XV até 1918 – e depois disso o domínio francês e britânico só aprofundaram as divisões, com as potencias coloniais escolhendo os sunitas – mais inclinados em aceitar as exigências do poder e reconhecer a autoridade dos governantes – para formar as elites dominantes pro-Ocidente. Foi assim no Iraque: uma rala minoria de sunitas foi organizada pela Grã-Bretanha, desde 1918, para governar a maioria da população xiita. Assim, sunitas e os interesses imperialistas ocidentais uniram-se no Iraque, no Líbano, na Síria, nos Qatar e na Arábia saudita – sempre resultando em ditaduras cruéis e altamente repressoras.

 

No regime do Partido Baath (Baas), sob Saddan Hussein, houve um arranjo precário com cristãos e certa tolerância com os xiitas, mas nos últimos anos do regime Saddan, os xiitas – muitas vezes apoiados e incentivados pelos EUA – revoltaram-se contra Saddan (um sunita) – e foram brutalmente reprimidos, com milhares de mortes e um amplo uso da tortura.

 

Assim, a versão de incapacidade de formar um Estado viável, em razão de divergências religiosas, oculta a continua e longa intervenção ocidental no Mundo Árabe, e a responsabilidade do Ocidente de lançar grupos religiosos e étnicos uns contra outros, visando facilitar a dominação estrangeira (foi assim na Índia sob domínio britânico; em Ruanda sob o colonialismo belga ou na Nigéria sob domínio britânico, por exemplo). Desta forma, o papel do imperialismo e do colonialismo, sua responsabilidade nas divisões locais, incluindo aí, a política dos Estados Unidos para a região – e antes dela, a contínua intervenção colonialista da Grã-Bretanha e da França, herdada pelos próprios americanos – fica excluída da responsabilidade factual e moral pela atual situação na região.

 

A principal “causa” apontada pela imprensa, repercutindo declarações e notas à imprensa, das autoridades de Washington, é a “incapacidade” do governo do premier Al-Maliki, um xiita, em “unir” e liderar um governo com sunitas e curdos.

 

Ora, um governo de coalizão funcionava no Iraque desde que este recuperou sua autonomia, na era pós-Saddan Hussein – com curdos, xiitas e sunitas.  O governo parlamentar, misto, baseado em ampla coalizão étnica e religiosa, visava, exatamente, dar voz e direitos a maioria da população do Iraque, constituída de xiitas, e autonomia controlada para os curdos, e que foram perseguidos, e mortos em grande número, durante os anos da ditadura de Saddan.

 

Uma das milícias xiitas da era pós-Saddan foi exatamente o “Dawa”, um grupo que enfrentou, além da Al-Qaeda, os remanescentes da Guarda Republicana de Saddan e os próprios americanos, de quem queriam uma rápida saída do Iraque depois da invasão de 2003. Desde 2006, o “Dawa”, transformado em partido político sob a liderança de Al-Malik, governa, com a maioria parlamentar, governa de Bagdá. Trata-se, a bem da verdade, de uma ampla e frágil coalizão. A oposição a Al-Malik não está centrada nos sunitas e/ou na exclusão destes. Mas, em outros grupos xiitas, inclusive nas “Milícias do Mahdi”, do líder Muqtada Al-Sadr, líder da “Milícia do Mahdi”, favorável à criação de um regime islâmico no país.

 

Nouri Al-Malik, por sua vez, foi exilado longo tempo na Síria (foi condenado à morte por Saddan), opôs-se fortemente aos Estados Unidos. Al-Malik se opõe, em especial, a política americana de reintegrar numerosos quadros do proibido Partido Baath – o partido único no poder na Era Saddan – incluindo a readmissão de militares fiéis a Saddan, policiais acuados de torturas, juízes e funcionários públicos do Baath envolvidos nas brutais repressões da Era Saddan. Na versão americana da recusa de Al-Malik se deve ao sectarismo “xiita” do premier. Na verdade, os Estados Unidos estão propondo ao governo do Iraque – por sinal reeleito em 30 de janeiro de 2014 – é que aceite, e perdoe, os membros do governo de Saddan, que participaram ativamente de ataques brutais contra a maioria o xiita do seu próprio povo.

 

Em nome da “união nacional”, os Estados Unidos, mais uma vez e em mais um país – tal como fez na América Latina -, exige que criminosos e violadores de direitos humanos, sejam levados ao poder e o passado recente seja esquecido. Washington gostaria, bem mais, de ver no governo homens como Ahmed Chalabi, premier entre 2005 e 2006, é um “cliente” da CIA e pensionista do governo americano. Chalabi, o principal informante dos EUA e chamado “o homem que preparou a invasão do Iraque”, perdeu sua cadeira no parlamento na última eleição. Outro nome defendido pelos EUA seria Ilyad Allawi, um líder secular, não religioso, ex-membro do Partido Baath, de Saddan Hussein, e que foi membro do governo de transição entre o governo de ocupação dos EUA e o novo governo livre do Iraque. O que ocorre é que ambos não possuem votos que legitimem suas possibilidades de formar um governo. Mas, tal qual fora no Vietnã do Sul (com Cao Ky e Van Thieu), nos anos de 1960, os EUA insistem na sua política de “nomear” os governantes de países clientes, malgrado os resultados das eleições.

 

Al-Maliki, acusado no passado de ter organizado atos terroristas contra os Estados Unidos e a França no Oriente Médio, causa, ainda, outros “transtornos” a Washington. Em primeiro lugar, as exigências americanas de extraterritorialidade para todo seu pessoal, incluindo militares, policiais e “contratados” (ou seja, mercenários) americanos no Iraque, foi recusado pelo Gabinete Al-Maliki. Assim, sob pressão da então secretária de defesa Hillary Clinton (entre 2009 e 2013), os Estados Unidos optaram, para melhorar e adornar a política externa “pacifista” de Obama, por uma retirada total de tropas do Iraque. Tratou-se, claramente, de um ato de chantagem: ou os EUA controlavam amplamente as FFAA e a Polícia iraquiana, com a inclusão dominante dos ex-membros do Baath, ou partiriam.

 

Al-Maliki optou pelo risco e pela manutenção da abaladíssima soberania iraquiana.

Além disso, em dois pontos fundamentais da política externa de Obama para o Oriente Médio, Bagdá contrariava os EUA. Por um lado, estreitou suas relações com o Irã, o maior país muçulmano xiita, governado por um regime hostil a Washington e a Israel, além de se aproximar da Rússia, onde comprou armas de alta performance (a ex-URSS era uma aliada do Iraque). Obama-Clinton tentaram, largamente, impedir as relações amigáveis entre Bagdá e Teerã e Moscou (o Partido “Dawa” de Al-Maliki possuiu fortes vínculos com o clero xiita iraniano) e sabotava claramente a tentativa americana de isolar o Irã.

 

Da mesma forma, Bagdá ensaiou uma política externa independente em relação às chamadas revoluções das “Primaveras” árabes, em especial na Síria. Para Bagdá, e Teerã, a situação na Síria era, e é, totalmente distinta das demais “primaveras”. Desde cedo denunciaram uma ampla intervenção externa, oriunda do Catar e da Arábia Saudita, com apoio dos Estados Unidos, Turquia e França, para derrubar o regime de Assad, uma coalizão xiita (alawita) e de cristãos, de caráter nacionalista, pan-árabe e anti-Israel.  Teerã e Bagdá denunciaram, desde logo, a intervenção estrangeira e a presença de mercenários e voluntários vindos do Golfo Pérsico, financiados pela Arábia Saudita e armados pela Inglaterra e França, visando derrubar o regime de Damasco.

 

Na Síria formou-se uma ampla coalizão fundamentalista, sunita, e de caráter altamente intolerante e conservador: a Al-Qaeda, a Frente Al-Nusra e a dissidência “Estado Islâmico do Iraque e do Levante (leia-se, Síria), chamado ISIS, em inglês.

 

Tal coalizão, no início manipulada pela Arábia Saudita – a possibilidade de unificar uma ampla área de territórios árabes sob sua autoridade e eliminar a influência iraniana na região–, tornou-se cada vez mais autônoma, e acabou por unir-se claramente aos ideais da Al-Qaeda, a qual foi, por fim, superada pela dureza e crueldade do “Estado islâmico do Iraque e do Levante”.

 

Por fim, Al-Maliki causou grande mal-estar em Washington, e Paris, ao apoiar os grupos pan-arabistas e xiitas no Líbano, onde o Partido “Dawa”, coirmão libanês do “Dawa” iraquiano e também muito próximo de Teerã, enfrentou as tropas americanas e francesas no Líbano.

 

Assim, nos anos recentes da Administração Barack Obama-Hillary Clinton (2009-2013) – cada vez mais próxima da centro-direita e da direita conservadora americana e dos interesses sauditas nos EUA – deu-se uma clara opção anti-Irã, anti-Dawa, anti-xiíta, baseando-se num triangulo estratégico capaz de dominar o mundo árabe, centrado na Turquia, Israel e Arábia saudita. Por tal opção, obsessivamente anti-iraniana, Washington permitiu o crescimento do fundamentalismo wahabita – o ramo mais radical do Islã sunita, que executa membros do clero xiita e destrói os lugares santos do xiismo -, a formação de um amplo exército e deu a estes uma base territorial, dominando territórios da Síria e do Iraque, fato que a Al-Qaeda jamais conseguira. O mais estranho de tudo, a somar-se a este imenso rol de erros estratégicos, políticos e antropológicos de Washington, é que a morte de Osama bin Laden, fortaleceu e acelerou a luta contra o governo de Bagdá, estabelecido pela invasão americana em 2003. A desaparição da liderança carismática de Bin Laden, entre seus seguidores e simpatizantes, permitiu a emergência de forças dissidentes como o “Estado islâmico do Iraque e do Levante” e a proclamação do “califado”, abrindo uma nova e explosiva realidade no Oriente Médio.

 

Enfim, os Estados Unidos, agiram como Harry Porter ao ganhar sua primeira varinha mágica: libertaram forças que não conheciam e não controlam. A diferença, crucial, é que neste caso há claro risco de descontrole geral e um amargo fim para os povos locais.