A frigideira
venezuelana
O
que se pretende fritar na Venezuela é mais que o chavismo; a crise testa os
novos apetrechos do extremismo conservador na região.
por:
Saul Leblon
A
Venezuela é a frigideira geopolítica da América Latina nesse momento.
Inútil
trata-la à distância, com pinças e luvas cirúrgicas.
O
que se pretende fritar ali é mais que o chavismo.
Peixes
graúdos que se cuidem: se a extrema-direita vencer, o óleo fervente vai se
derramar abaixo do Equador.
O
que está em jogo não é só o petróleo
–embora incomode que as maiores reservas de óleo pesado do planeta
estejam sob a guarda de um socialismo difuso,
e não de carmonas, capriles e leopoldos
de fácil trato.
Incomoda,
sobretudo, os limites ultrapassados.
Os
interditos rompidos.
As
grandes questões do poder de classe recolocadas na mesa da luta política.
Incomoda
o chavismo ter ‘sujado’ de novo a agenda econômica regional ao escancarar a
dimensão política da luta pelo comando do desenvolvimento.
Chávez
e o chavismo esticaram a tal ponto as
cordas da história que devolveram pertinência e atualidade a referências e
bandeiras que se imaginava silenciadas e calcificadas para sempre.
As
trancas rompidas incomodam setores da
própria esquerda moderada.
Súbito,
ei-los convocados a amarrar essa nau à deriva em algum pontão do futuro que
ninguém mais ousava dizer que ainda existia
–e que talvez precise de fato ser reinventado.
É
por esse efeito contagioso que a aventura precisa ser exemplada como um
desastre irremediável -- coisa da qual a mídia internacional se desincumbe
diuturnamente, há anos.
Agora
com redobrado empenho.
Se
alguém nutre dúvidas quanto a ferocidade desse cerco, acesse o site em
português do jornal El País.
Um
dos principais veículos do mundo, a página do diário espanhol, em versão local,
traz cinco manchetes sobre a Venezuela.
O
conjunto compõe uma narrativa que o líder da extrema direita, Leopoldo Lopez, distribuiria com naturalidade pelas ruas de Caracas.
Da
mídia brasileira não é preciso dizer mais nada.
Seria
preferível que a Venezuela fosse mais devagar?
Tanto
quanto teria sido melhor que a primeira revolução socialista ocorresse na
Alemanha, ou nos EUA. Não na Rússia czarista e feudal, não em Cuba desprovida
de tudo e tão perto do inferno.
Mas não é assim que a história caminha.
Tempos
históricos embaralhados na confusa fronteira entre populismo, nacionalismo,
socialismo, miséria extremada e opulência oligárquica, urgências, voluntarismo
e desassombro se entrecruzaram na Venezuela nas últimas décadas conduzindo as coisas até esse desemboque.
Muitos
gostariam de circunscrever o coquetel agridoce dando-lhe o subtítulo de um ponto fora da curva no cardápio da
moderação regional.
Mas
o que
se vive em Caracas não configura uma experiência particular.
Rupturas
de ciclo histórico frequentam os elos mais frágeis e extremados da corrente.
O
destino das experiências progressistas em todo o continente está entrelaçado ao
enredo venezuelano e seria oportuno aprender com a travessia em curso.
A
lição que avulta no primeiro plano sugere que um pedaço do conservadorismo –personificado lá em Leopoldo López-- concluiu que a via eleitoral ficou estreita
demais, depois de tantas derrotas
presidenciais.
Quem
enxerga as interações em curso não titubeia na conclusão: as forças
progressistas devem reforçar os alicerces do muro anti-golpista em toda América Latina.
Outros
Leopoldos López virão.
A
integração latino-americana agiganta-se em importância como vigia e fiador da
transição para uma democracia social efetiva.
A
cabeça de ponte em gestação nas ruas de Caracas não pode ser subestimada:
hesitar diante dela significa endossar uma interdição histórica.
Ela
tornará ornamental a bandeira da construção de um Estado social na região.
Se
a escolha não for pela resignação é preciso dar consequências a ela.
O
cinturão de legalidade em torno de Maduro precisa ser fortalecido com gestos,
recursos e a presença física de chefes de Estado da Unasul e Mercosul em
Caracas.
É
urgente materializar um contraponto claro às turbinas que impulsionam o
golpismo.
Lula
tem liderança e prestígio regional para liderar esse mutirão.
Há
mais a fazer, porém.
Ao
transbordar de forma beligerante para as ruas,
a disputa pelo poder na Venezuela iluminou a necessidade de um aparato
popular –inexistente na maioria dos
países-- para defender os avanços e conquistas acossados pela radicalização
conservadora.
Insista-se,
não se trata de um problema apenas do chavismo.
Mas
de uma região inteira traumatizada pelas refregas colhidas ao longo de
diferentes tentativas de transitar para uma sociedade mais justa.
Inclua-se
nessa lista o fracasso emblemático da
guerrilha de Che Guevara, morto em outubro de 1967, na Bolívia.
Mas,
sobretudo, o massacre da via democrática para o socialismo de Salvador Allende
, no Chile de 1973.
Em
11 de setembro, o então chefe das Forças Armadas, general Augusto Pinochet,
eviscerou a esperança em uma transição socialista, cuja principal âncora era a
ilusão no profissionalismo de um aparato militar obedientes às urnas.
Desde
então o socialismo passou a figurar no discurso progressista como a margem de um rio desprovida de pontes
e embarcações de acesso.
Aos
sangrentos reveses dos anos 60/70, seguiu-se um ciclo de regressividade
neoliberal.
A
tensão venezuelana veio sacodir essa
prostração histórica, prestes a completar 40 anos.
Depois
de Allende, nenhuma outra experiência de governo popular levou tão a sério o
desafio de dilatar as fronteiras da democracia social quando a revolução
bolivariana.
Não
que o tenha concluído.
Longe disso.
Há
lacunas imensas no chavismo; algumas que assustam.
A
fragilidade de sua pata econômica, incapaz de internalizar a receita petroleira
em dinâmicas endógenas de crescimento, emprego e renda, é uma delas.
Outra: a inexistência de um partido enraizado, capaz
de comandar a revolução na ausência de Chávez,
morto em março de 2013.
O
cerco asfixiante da mídia, porém, também oculta
avanços notáveis, que ajudam a
entender como esse besouro político ainda voa, 15 anos depois das duras provas
do poder.
Ignacio Ramonet mediu as asas do versátil
coleóptero chavista: 42% do Orçamento do
Estado vão para investimentos sociais; 5
milhões de pessoas foram retiradas da pobreza, a mortalidade infantil caiu
drasticamente; o analfabetismo foi erradicado; quintuplicou o número de
professores nas escolas públicas (de 65 mil a 350 mil); Chávez criou 11 novas
universidades; concedeu aposentadorias a todos os trabalhadores, etc.
Que
um movimento de extrema direita tenha
empalmado a classe média e conseguido traze-la
às ruas contra isso diz o bastante
da concepção de sociedade que
hoje se reclama como ‘democrática’ nas ruas de Caracas.
O
que está em curso na Venezuela alerta os governos progressistas para os
estreitos limites da tolerância
conservadora na região.
Para
afrontá-los é crucial saber onde se
pretende chegar e como providenciar as condições para isso.
Muitos
acham que essa é uma ‘não-questão’; que tudo se resolve no piloto automático do
economicismo, com avanços incrementais que se propagam mecanicamente na
correlação de forças na sociedade.
A
esses, o economista Márcio Pochaman, em recente entrevista à CUT, endereçou uma
pergunta essencial nesses dias em que as barricadas abrigam seguidores de Yulia
Timoshenko, em Kiev, e as de Caracas são ocupadas pelos mascarados de Leopoldo Lopez:
“Criamos
17 milhões de empregos desde 2003; um milhão de jovens ingressaram na
universidade graças ao Prouni e 1,5 milhão de famílias ascenderam ao Minha
Casa, Minha Vida Qual foi o saldo organizativo de tudo isso?”, indaga Pochman.
É
como se dissesse: a frigideira está fervendo na Venezuela; qual a nossa
capacidade de resistir à fritura e avançar de agora em diante?